LYGIA
Kátia Rodrigues
 
 

Quando pequena costuma ouvir que seria moça bonita. Nascera quando os pais, descuidados, pensavam que a sorte ou destino lhes deixara somente filhos varões. Da mãe herdou os olhos verdes, o corpo torneado; do pai os cabelos negros, a ousadia, marca que vez ou outra trazia problemas, mas que a enchia sempre de orgulho.

Cedo descobriu que a vida do interior não lhe bastava. Com jeitinho convenceu aos pais que seria importante estudar numa cidade maior, investir numa profissão que possibilitasse ganhar a vida em qualquer lugar; logo deixou a pequena cidade, e foi viver só. Aprendeu a viver sua vida, ter sua casa, seus sonhos e por dois anos morou fora do País. No regresso o reconhecimento profissional permitiu que sua independência aumentasse, o padrão de vida elevasse suas escolhas e prazeres, e sabia que fizera a opção certa.

Sentia-se feliz por sua profissão, e costumava dizer do privilégio que era, ainda por cima, ganhar dinheiro, bem mais do que precisava, para fazer o que gostava. Sua vida transcorria assim quando o conheceu, num dia comum, sem pretensão de qualquer surpresa. De alguma forma sempre soubera que ele viria. Como alguém que sempre esteve ali, esperando somente a hora de materializar-se. E assim foi. Era real, ainda que tivesse sido idealizado por tanto tempo. Descobriram-se e sentiam-se felizes juntos; amavam-se tinham certeza. E continuaram com suas próprias vidas corridas, encontrando tempo na vontade um do outro de estarem sempre próximos. Filhos não faziam parte dos projetos pessoais, sentiam que se bastavam, e a vida seguia.

Um dia surgiu uma oportunidade de mudança de Cidade. No primeiro momento ela pensou que ele fosse conversar a respeito, perguntar o que achava de morarem distantes. Nada que um vôo não resolvesse, pensava, mas mesmo assim preocupou-se. Ele calou-se e decidiu sozinho, por si; não pôde deixar de aceitar, 'a proposta era irrecusável', e porque não arriscaria? Mesmo sentindo-se de excluída da decisão que não lhe pertencia, torceu por ele. E assim aconteceu o distanciamento, um esparsar de dias que voavam, intercalados por longas noites frias. Viajaram de um lado para outro por quase dois anos. Cada novo encontro cheio de saudades, intercalado por dias sem olhares, sem mãos, onde os únicos contatos eram palavras trocadas. Muitas vezes sentiu-se só, mas nada disse E os dias seguindo num ir e vir ligeiro até aquela manhã.

Acordou no horário de sempre, e ao invés de levantar-se ficou ali, imóvel pensando sua vida. Relembrou os últimos encontros. Algo havia mudado, e o que antes era um mistério ficou claro. Saiu da cama e foi fazer café. Ligou a secretária eletrônica, olhou o dia lá fora. Decidiu ficar em casa hoje, e simplesmente não ver ninguém; arrumou uma bandeja com torradas, geléia, um copo de suco. Levou-a para o quarto. Ajeitou-se na cama; lembrou que quando criança, e ficava doente, fazia as refeições na cama trazidas pela mãe. Sentiu saudades de casa, que agora era tão longe. Enquanto tomava café, olhava por sobre os pés, estendidos na cama, um abismo invisível; o amor ao romper-se dilacera, rasga, corta. Não nos acostumamos, mas passa: é apenas uma fatalidade!

 
 

email do autor