NO LIMIAR DAS SOMBRAS
(parte um)
Beto Muniz
 
 

A dor é tanta que o menino fecha os olhos e deixa a cabeça pender até se apoiar no ombro do pai que corre pela noite, pela trilha, pela borda da mata. O queixo balança, pula no ritmo do trote paterno, isso incomoda mas o menino já não tem forças para sustentar o peso da própria cabeça e deixa ela ali, pulando no pescoço do pai. Mantém os olhos abertos, voltados para os lados da mata. A estrada parece estar sobre uma gangorra, sobe e desce, sobe e desce, já não sabe quanto tempo faz que o pai está correndo, identifica o caminho e reconhece a mata do sítio onde mora. É noite, mas essa mata o menino conhece bem, mesmo no escuro. Sabe que ela termina na porteira, rente ao mandiocal plantado entre a divisa do sítio e o terreiro da casa. Sabe que entre o mandiocal e a mata tem uma cerca de arame farpado, e rente ao arame tem o pé de goiaba com os três galhos em forquilha onde ele já ficou com o pé entalado duas vezes. O mesmo pé que agora jorra sangue. Esse pé parece até um pé amaldiçoado que nunca fica curado de vez, sempre tem um corte, um estorço, um ralado, um furo. Ele levanta a cabeça e vê nas sombras os contornos inconfundíveis da goiabeira, lembra de quando subiu nela semana passada, quando escorregou esse mesmo pé, o pé mais sofrido desse mundo.

Soube na hora do escorregão, antes de sentir o pé travar, que estava encrencado. Da primeira vez, quando ainda era miúdo, tinha ficado um bom tempo dependurado com o sangue descendo para a cabeça e o pé ali, preso na forquilha tripla. Gritou, assoviou, chorou e desistiu de pedir ajuda. Via o telhado de palha da casa tomando o lugar do céu lá depois das mandiocas, a mãe devia estar do outro lado da casa lavando roupas. Os irmãos e irmãs podiam estar em qualquer lugar do sitio, quem neste mundo virado de pernas pro ar ouviria seus chamados? Ele tinha que se soltar sozinho. Fez de um tudo para desentalar o pé sem sucesso. Foi salvo pelo pai que estava voltando das bandas do sítio do tio Chico. O pai pisava um céu de capins, passou por debaixo do arame, ajeitou o chapéu emoldurado pelo chão de nuvens e com uma só mão levantou o filho pelo pé livre, com a outra mão desprendeu o pé entalado e o baixou ainda de ponta cabeça, vendo o mundo invertido. Primeiro a cara tocou o solo, em seguida o ombro, depois o braço e a mão tentando dar dignidade a posição do corpo que o pai foi baixando até o miudinho ficar deitado em cima das folhas secas e duma goiaba podre cheia de formigas. O pai nem riu, nem falou nada, só parou ajudou o filho e seguiu seu caminho, agachou logo adiante para juntar terra num pé de milho que crescia entre as mandiocas, e continuou até entrar na casa. O pai era assim mesmo, uma secura doce de dar nó na garganta. Dessa segunda vez o pé tinha entalado de mau jeito mas o menino não era tão miúdo, era mediano, e pode segurar no galho de cima e ficou ali, torto, uma perna no ar e a outra afundada na forquilha. Os braços finos agüentando o peso, pouco peso, do corpo mediano pra pequeno, mas não tão miúdo. De onde estava viu o irmão graúdo chegando pelo lado de lá do arame, no rumo das bananeiras. O menino quase pediu ajuda, pensou melhor e resolveu ficar quieto porque era bem capaz de conseguir soltar o pé antes de se tornar vítima mais uma vez da maldade do mais velho, varapau, magrelo e desalmado. Da vez em que achou que o rio Santa Rosa dava pé e o rio não dava, o peste viu ele afogando e ficou rindo, debochando um bom tempo antes de mergulhar e puxá-lo pelos cabelos. Sorte que os cabelos estavam grandes, foi antes do pai mandar a tia Balbina cortar na tesoura bem rente dos lados deixando só uma moitinha desenxabida em cima da moleira. Sorte, ou ainda estaria lá, pelado, servindo de banquete para lambari no fundo do rio que nem era tão fundo, o menino é que era miúdo mesmo. Mexeu o pé, só pensou que mexia. Pouco adiante o irmão está parado, olhando em volta conferindo no horizonte a solidão, o vazio de gente. Bastava olhar um pouquinho para cima e veria o irmão do meio entre as folhas da goiabeira, tal qual estava desde o escorregão. Uma perna no ar a outra dentro da forquilha e o corpo desengonçado sendo sustentado pelos dois braços magros. Mas o irmão anda igual o cachaço dentro do mangueirão e só vê aquilo que está no chão, não tem olhos para ver o que está no céu. Quieto no seu esconderijo forçado, com o pé começando a formigar dentro da tríplice forquilha, o menino espia em silêncio o magriço tirando do bolso o canivete enferrujado e furando o tronco duma bananeira várias vezes. O irmão do meio até para de respirar, sabe das artes do irmão mais velho e dos cascudos que ele toma do pai toda vez que se mete a bolinar as cabritas como faz agora com a bananeira. Sabe também que não vai agüentar muito tempo na posição em que se encontra, periga as mãos cansarem e ele ficar pendurado como da outra vez, por isso tenta novamente ser mais forte do que é e erguer o corpo, só pode contar com a força dos braços, se o irmão o descobre bisbilhotando suas artes aí sim é que vai judiar! Pensa nisso enquanto exige mais empenho e forças dos braços que sustentam o corpo, se esforça até conseguir mexer a perna alguns milímetros. Sentiu que dava, está de mau jeito, mas basta tirar um pouco mais o peso de sobre a perna que o pé se solta. Antes de reiniciar seu esforço viu a cobra cipó surgir silenciosa por entre as folhas da bananeira que o irmão bolinava. Ela, a intrusa não deveria estar ali, e o outro ocupado com o movimento dos quadris socando o tronco a sua frente não percebe o ser rastejante brotando de entre as folhas largas, logo acima de sua cabeça pensante. É cobra sem veneno, o menino sabe, cobra para assustar as irmãs e primas, mas não é coisa que botasse medo num magricelo bitelão feito o irmão. Vai levar só um susto por causa dessa enxerida marrom esverdeada. O menino ri diante dos próprios pensamentos, esquece seu pé amaldiçoado preso na forquilha e pensa no magricelo tendo que escolher entre sacrificar o momento por conta duma cobrinha de nada ou ficar encarando a danada até terminar o serviço. Ela vai descendo observada pelo pobre dependurado seis metros adiante. Ele pensa na sua posição de testemunha e quase vítima, não pode ficar ali, a mercê dos acontecimentos até ser descoberto. Exigindo o máximo de suas forças os braços respondem, o corpo gira para cima e para o lado, a perna se movimenta e o pé desatarraxa. O menino é pego de surpresa com o peso do corpo solto bruscamente no ar, estatela-se goiabeira abaixo. Foi um susto de cá e outro susto de lá. O barulho de coisa grande se mexendo no mato pega o magriço desprevenido no ir de encontro à bananeira e ele acaba indo com muita força, dando um tranco que faz a esverdeada despencar e se enroscar nas suas partes expostas. Ele solta um berro, misto de bronca por identificar o irmão do meio se levantando; humilhação diante do evidente flagrante; e susto com a cobra ali, se confundindo com suas jóias e dedos. O mediano já se levantou e tomou o rumo da casa gritando pela mãe na esperança de retardar a sova que levaria do graúdo. Já conhece o tipo, tem muita disposição em bater nos irmãos menores. Depois de ser pego entalado numa bananeira vai querer calar todo mundo na base do tapa. O irmão do meio correu atravessou o mandiocal sem olhar para trás, na soleira da casa parou, debaixo do batente tomou coragem e conferiu se estava sendo perseguido. Não estava. Respirou aliviado e foi cuidar do pé ralado ao lado de onde a mãe enxaguava roupas. Ele não tivera culpa de nada, mas o irmão acharia um jeito de culpá-lo pelo vexame, pela cobra verde invadindo o calção, pela interrupção... Deixa estar que o menino sempre foi mais esperto, sempre soube a hora certa de propor uma troca, neste caso trocou perdão da sova pelo segredo do ridículo lá nas bananeiras. Fez um bom negócio - pensa e sorri de olhos fechados vencidos de dor e sono.

O menino acorda sobressaltado, não sabe se desmaiou com a dor no pé ou se cochilou e acordou quando o pai entrou na casa. Nem viu o pai abrir e fechar a porteira, passar pelo mandiocal, só sabe que chegou em casa e a mãe já o socorre. Trata com habilidade do pé machucado. A mãe é boa nisso. Sempre encontra jeito de curar esse seu pé machuquento. Água quente, ervas, panos e preocupações. Quer saber o que aconteceu, mas o marido não diz nada, está mudo no canto da cozinha, bebe café requentado, bebe em silêncio culposo e ela pensa que foi ele quem machucou o pé do filho. Ralha com ele, o marido, seu homem neste canto isolado do mundo e também no resto do mundo inteirinho. Seu homem, Jeromo, pai dos seus filhos.

(continua na próxima atualização)

 
 

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