PARA QUANDO VOCÊ FOR
UMA PEQUENA ESCUTADORA DE HISTÓRIAS
(carta para minha neta)
May Parreira e Ferreira
 
Inverno 2004

Por tudo que leio nesses apontamentos,
pela ruptura de certas frases, fico em
dúvida se esses escritos são meros delírios
ônticos ou mera sedição de palavras.
(Manoel de Barros, "Introdução a um caderno de apontamentos")

Neta querida, você nasceu no dia de São João deste ano de doismilequatro e eu já sei que um dia nós nos sentaremos na cadeira de balanço se estiver fazendo frio, ou debaixo da jabuticabeira se o sol for quente, a sombra fresquinha, e se ainda existir esta casa. Seja qual for o lugar, se você pedir, Vovó me conta a história de quando você era pequena, eu falarei de coisas que vivi ou imaginei viver nesta cidade de gentes, de prédios, de placas, de números visíveis ou não e cifras inimagináveis.

Para você que nasceu junto à mais paulista das avenidas, contarei que nasci numa casa de paredes altas, fogão de lenha, e um gigantesco terreiro. Vou precisar explicar o que é um fogão que se alimenta de madeiras, e usarei palavras adequadas para fazê-la entender o que é um terreiro. Contarei que meu pai carregou-me nos ombros para que eu visse a queima de fogos no aniversário de 400 anos de São Paulo, e você nem vai fazer idéia de quanto é esse número, mas eu direi que você nasceu no ano de aniversário de 450 anos desta imensa cidade, e também houve muita festa, sim, por você também. Quanto é isso, você perguntará, direi que é o dia de ontem mais o dia de hoje e mais o amanhã, um monte de dias sem fim.

Quando eu tinha a sua idade fui com meus pais morar numa rua com nome de passarinho, que tinha terra batida no chão e verões marcados por um forte cheiro-de-chuva-boa, hoje é bairro elegante, cheio de charme. Lá fiz muitos amigos, com quem brincava brincadeiras de rua que ensinarei a você. Mostrarei o estilingue que ainda guardo, vou atirar um pedregulho e farei graças para ouvi-la gargalhar, já amo o som de sua risada, já o reconheço no choro que antecede o mamar.

Você perguntará se eu não tive bonecas e terei de confessar que gostava mais de carrinhos de rolimã e de bicicleta. Não havia o Metrô, não havia o trânsito que nos deixa enlouquecidos, corredores expressos, não havia computadores nem celulares, parece que foi no tempo das cavernas a minha infância. Os rios que cruzam a cidade eram despoluídos, depois ficaram imundos e mal cheirosos, depois levaram um banho bem limpo de bucha e tudo, e quando estiverem lindos, você irá passear em suas margens, como eu fiz um dia.

O Parque Ibirapuera, aquele lugar onde a levarei e você gostará tanto quanto eu, era um lugar vazio, não havia pessoas correndo, nem com patins, nem skates, Uma época na qual ninguém se preocupava com dietas e exercícios. De presente de aniversário, este ano, o Parque ganhou fonte luminosa, e auditório novo projetado pelo arquiteto imortal que não é Deus, mas isso é para outra história.

Estranho este vai e vem de histórias, você irá amar a cidade em todas as suas novidades, o futuro de São Paulo será o seu presente. E para não esquecer o meu passado, contarei para você sobre as corridas de São Silvestre, das quais participei de muitas, as festas juninas do Paulistano, as Quermesses da Nossa Senhora Achirupita, as corridas de carros em Interlagos, a rua Augusta, as feiras de antiguidades, e tudo o que mais lembrar.

Nunca direi a você, Bons tempos aqueles. Porque para mim, bom tempo é este em que tenho você por perto, tempo de vê-la crescer com todos os anticorpos adquiridos para a vida na cidade. Se você quiser, quando for para a faculdade, poderá morar comigo, eu a ajudarei com as pesquisas, já que estou informatizada e conectada, e farei seus pratos preferidos.

A cidade que me viu crescer a receberá também, iremos juntas aos teatros, aos cinemas, à Pinacoteca, ao Masp, lugares perenes. Bons tempos estes de quando você nasceu, melhores serão os de quando você for uma pequena escutadora de histórias.

 
 

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