OBITUÁRIO
Luciana Priosta
 
 

Luzes coloridas pulavam as centenas ao redor da minha cabeça. Sentia um frio horrível apesar do sol a pino e da umidade sufocante do ar. Juntei meus pertences espalhados pelo chão. Precariamente equilibrada joguei-me uns passos à frente, mas fui incapaz de alinhar meu centro de gravidade com o meridiano correlato. Sentei-me e desisti de andar. A qualquer momento uma alma qualquer vai passar por mim. Ainda existem almas caridosas por esse mundo. Gente doida em enfim que insiste em praticar caridade mesmo contra todas as evidências de que o anticristo habita entre nós. Sempre gostei de ser doida viajando de sinapse em sinapse. Veja bem que digo doida e não louca. Pessoas loucas são perigosas e imprevisíveis, descontroladas, tomam tarja preta e gastam fortunas com analistas. Já as doidas são vivas, quentes e intensas.

(Intervalo. do Latim Intervalu: espaço, distância entre dois pontos ou lugares; distância que separa dois fatos no tempo ou dois atos nas peças teatrais...)

Precisei de uma força sobre humana para conseguir fazer girar o registro. O som metálico do girar da torneira reverberou por todos os ossos do meu crânio. Os azulejos do box pareciam afundar na parede formando longos túneis paralelos. A pancada da água em minhas costas me trouxe de volta (já me ia escapulindo por uma das galerias abertas na parede...). A temperatura da água estava extremamente agradável. Consegui relaxar e a pressão na têmpora diminuiu. Fechei os olhos e aspirei longamente o vapor d´água. Completamente entregue, escorri pelo ralo do box até o apartamento do vizinho de baixo. Levantei os olhos: me senti cega, mesmo conseguindo divisar perfeitamente todas as formas e cores ao meu redor. Enrolei-me numa toalha gigante, atravessei o corredor até a porta da sala sob o olhar inquiridor do angorá em cima da estante. Chaves. Ponto estratégico que determina o acesso a alguma coisa. Precisava de um ponto qualquer que me desse acesso ao outro lado da porta.

(Espaço. Do Latim Spatiu: extensão indefinida, extensão tridimensional ilimitada ou infinitamente grande, que contém todos os seres e coisas e é campo de todos os eventos...)

Ando cheia de manchas roxas. Os joelhos doloridos e arranhados. O calor infernal que tem feito todos esses dias devem estar fritando meus miolos. Não há um só dia em que não esteja voltando para casa e não de com a cara em algum poste. As vezes piso em falso e caio em buracos imaginários. Outras, os muros brotam a minha frente. È como se a anima de todas as coisas quisessem impedir-me de chegar em casa. Mas sempre chego de alguma forma. Já fiquei amiga do angorá que pula pro meu colo cada vez que passo pela sala. As cegas procuro pela chave (já recebi três cópias mas a toalha que envolve meu corpo não tem bolsos) e nunca encontro-as. Ele me espera do outro lado da porta trancada. Estremeço com o som lúgubre das dobradiças deslizando mansamente. Num salto, imobiliza-me pelas ilhargas, feito bicho.

(Vazio. Do Latim vacivu: que não contém nada ou só contém ar; esvaziado; despejado; desocupado; despovoado; desprovido; destituído)

Parece que sente prazer em me torturar. Do outro lado da porta (malditas chaves!) me faz esperar sempre um segundo além do suportável. Machuca-me e despeja toda sua satiríase aos meus pés. Todo santo dia. As vezes fica esperando no banheiro até que eu caia em seu colo para recitar baixinho todos os indicadores econômicos daquele dia. Depois se desmancha em desculpas e me devora. Mas quase sempre está atrás da porta da sala. Ou acho um bom encanador ou este homem vai me enlouquecer.

(Loucura. alienação mental com modificação profunda da personalidade; estado de louco; acto próprio de louco; temeridade; imprudência)

Estou contente comigo mesma hoje. Consegui prestar atenção a cada palavra da apresentação de um novo fornecedor. E ainda o interrompi de quando em quando com perguntas inteligentes e pertinentes. Recebi muitos elogios de meus superiores que me acenaram com possibilidade de aumento para ainda este mês! Nunca me senti tão segura e eficiente. Não apareço no trabalho há 5 dias. Não consigo levantar-me pela manhã. Não fui capaz de ligar para lá. Estou com medo. Deixei que o telefone tocasse por muitas vezes. Coloquei um travesseiro em cima para não ouvi-lo. Tenho a impressão que meus ossos vão partir cada vez que ele toca. A dor é quase insuportável. Ao menor ruído meus músculos se retesam. Então me tranco no box do banheiro e deixo a água morna levar toda a dor ralo abaixo. O angorá ronrona no sofá, não liga mais para minha presença pela casa. Ele está me esperando como sempre. Sei que vai me machucar novamente. Como todos os dias. Mas eu não tenho (nunca as tenho!) as chaves da porta.

Estou cansada

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Julieta Schariatti Giroletto
1 de janeiro de 1977
9 de outubro de 2004

Filha de Angelo e Terezinha Schariatti Giroletto (agricultores), nasceu em Ipeúna (SP). Casou com o professor José Zanchetta e não teve filhos. Divorciou-se à 7 anos. Faleceu em Joinville (SC) onde residia desde 1997. Era a mais velha de uma família de dez irmãos: Otelo, Horácio, Lear, Catarina, Ofélia, Puck, Rômulo e Remo (gêmeos) e a pequena Beatrice. Foi encontrada morta por afogamento no banheiro de casa. Não deixou parentes, amigos ou testamento. Nunca amou de verdade. Nunca viveu de verdade.

Esse obituário é uma farsa.

 
 

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