RECICLANDO
Leila de Barros
 

Sigo reciclando tudo que encontro pelas trilhas em que caminho. As emoções tortas, os sentimentos travestidos em ferros retorcidos, o pensar travado e obscuro, as linhas neurais sem brilho e paixão.

Solto os presságios como se fossem corvos brancos. Eles seguem despoluídos para pousar em algum canto onde haja esculturas de gelo.

Meus pensamentos ainda góticos apontam sempre para uma tendência musical. Fagulhas leves soltam-se e me prendem a um solo de balé.

Ensaio alguns passos de dança, e um espacato lento me divide em partículas. Passo um aspirador de pó e reúno tudo para reciclar. O que antes era orgia de pensamentos e passos floreados, transformo em uma coreografia organizada.

Tento colocar cores nas paredes da alma, mas elas descoram e descem ao rodapé. Crio um grafite impressionista nos muros e cantos. Há folhas secas por toda à parte. Vão adubar minha próxima colheita ou servir para algum mimetismo.

A maré molda minhas sensações ígneas como a um magma, mas ao amanhecer recolho tudo e faço um pote de bricolagem.

Desfaço a colcha enredada de conceitos masoquistas, que antes povoavam o porão, feito teias. Derrubo paredes que me sufocam, recrio um mezanino, abro espaços, crio colunas e escrevo nelas.

Do que me foge e não consigo segurar em concha, faço uma regência em quatro tempos e solto ao vento em carícias emudecidas.

Separo cautelosamente a voracidade da fome, o desejo vertiginoso do vício incauto, mas eles cruzam-se no limite do meu horizonte marinho. Faço uma carta náutica.

Os detritos trazidos pelas ondas secam ao sol e faço uma fogueira para dançar em volta. Solto meus lobos, abro os alvéolos, reciclo o ar...

 
 

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