O ALMOÇO
Kátia Rodrigues
 
 

Antes de abrir a porta perceberiam que eu estava ali. Quente exalava. Deitado no escuro uma luz baixa a esquerda. A minha frente uma mesa de onde por baixo se via pernas, cruzadas. Lindas pernas. Não faz muito tempo ela estava de pé, muito próxima me pegando sem nenhum cuidado. O trajeto até em casa me pareceu cheio de pressa, e pelo andar balançado percebi seu imediatismo e necessidade. Paramos algumas vezes: na porta do prédio, no hall dos elevadores e novamente antes de chegarmos ao apartamento.

Ao entrar ficamos um tempo na sala, já que a campainha do telefone nos aguardava. Não via a hora de me desprender da armadura e sentir suas mãos sobre mim. Mal sabia de suas intenções. Meu grande erro foi sempre acreditar que as coisas acabariam bem, desde que nasci. Tirado da mãe nas primeiras horas, imaginei que fosse ter um destino melhor. Fui pego e carregado não sei dizer por quanto tempo, mas não posso queixar-me de falta de zelo: cheguei são e salvo. No caminho tentei me comunicar, mas se olhavam, não me viam, de modo que tudo aquilo que eu era foi se coisificando aos olhos do mundo, mas nunca deixei de pensar. O mundo era uma grande solidão.

Minha primeira morada era grande. Na chegada passei por alguns pares de mãos, cautelosos. Depois fui trancafiado. A vida era cinza pensei, ouvindo ruído de selos, de papelão e lacres. Mesmo assim quis saber onde isso ia dar.
Não sei contar o tempo, mas as horas custam a passar, quando se sabe que a vida vai ser curta, enfileirado de pé a equilibrar-me. Finalmente chegamos ao destino. Barulho de vozes, engrenagens, reboques.

Lembro que as luzes apagaram-se e o silêncio veio algumas vezes cortado por ranger de portas de ferro. Não cheguei a dormir, nem me comunicar. Então ela chegou. Olhei-a pela pequena abertura, meio de lado. Tinha mãos de dedos longos, unhas pintadas de vermelho. Diferente das pessoas que circulavam ali, me envolveu quase por inteiro, colando-me junto ao corpo e senti que como eu, tinha pressa. Por pouco tempo acreditei que fossemos ficar juntos; não nego a falta de perspicácia quando ouvi a conversa ao telefone: burro eu!

Fiquei espionando a sala, pela fresta da caixa, sob o plástico branco da sacola. Tudo no seu lugar, na mais perfeita ordem; ela falando enquanto descia as mãos nos cabelos, olhando o dia lá fora, dizendo que todos deveriam chegar perto de uma hora. Ao desligar me pegou de jeito, entrando apressada, fazendo com eu quase perdesse o equilíbrio. Na cozinha percebi que ela tirava os sapatos, e muito ligeira tirava o vestido, pela cabeça, seminua entrando no corredor. Voltou com uma camiseta branca, que lhe expunha as coxas, cabelos para o alto, sensual em sua pressa. E foi então que me tocou.

Ligou o forno e virando-se começou a untar um pirex redondo de louça branca. Fiquei observando suas mãos deslizando, subindo e descendo, percorrendo os cantos, chegando as bordas. Cuidadosamente polvilhou com farinha branca toda a superfície agora coberta pela cor amarelo claro. Sacudiu-o, virou-o de fundo para cima, provocando uma fina camada de chuva em pó. Colocou-o ao lado e pôs-se a lidar com os ovos. Foi então que me dei conta que tudo estava acabado, que meu fim chegara, que não tivera chance de mostrar a ela que eu pensava. Com uma espátula branca quebrou um ovo, um outro, mais um, até chegar a minha vez. Pela primeira vez estávamos frente a frente e olhei-a nos olhos antes de sentir o frio metálico do batedor de ovos.

Agora estava sentada, diante de mim, banho tomado, calçada, de pernas cruzadas esperando seus convidados, que logo chegariam. Minha presença não se fazia notar e eu já cumprira o papel que ela determinou. Eu: a seu serviço, suas ordens, servo de suas vontades: virei suflê!
A campainha da porta tocou e ela levantou-se, ajeitando a saia. Fechei os olhos e não pude conter as lágrimas. Dentro em pouco, vítima da fome, eu, o ovo, transformado em suflê não seria mais nada, consumido pelos meus ovívoros algozes.

 
 

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