AQUILO QUE VIVEMOS
Paffomiloff

- Cuidado! Está pisando no meu pé - queixou-se a árvore.

- Você não tem pés, tem raízes - observou a criança.

- Oh criatura cruel - lamentaram as árvores em coro - já fomos pessoas,mas pusemos termo à nossa própria vida, por isso fomos condenados.

- Não parecem pessoas.

- Pare de nos torturar, fomos condenados, por isso estamos no bosque dos suicidas.

A criança olhou em torno e não era um bosque, mas uma floresta, onde o lamento não era do vento, mas das almas condenadas, cujas raízes profundas bebiam rios de sangue que corriam em cavernas de arrependimento.

A geografia do inferno está em constante mudança, pois o desconhecimento do que nos espera é um dos maiores temores dos humanos. De qualquer forma, quando fosse o momento de alcançar seu destino, a criança seria a primeira a saber.

Muito rápido se abriu um deserto de farpas, caminho sem retorno ou atalho, que dilacerou seus pés e pernas. Mesmo assim avançou resoluta pois vislumbrou uma porta aberta no horizonte, ou seja lá o que fosse a linha que dividia a plataforma em que os condenados se arrastavam das nuvens que os oprimiam.

Os maiores obstáculos eram, sem dúvida, os condenados que haviam desistido. Em sua maioria pastores evangélicos e diversos padres.

Mais tarde, a criança soube que o inferno dos muçulmanos era diferente, dos budistas era ainda pior (mas as pessoas tinham saída com data prevista) e outras religiões mais civilizadas nem inferno tinham, por isso seus fiéis não passavam por tais dissabores.

Um demônio muito feio guardava a saída.

- Boa tarde... ou boa noite, senhor...

- Choronzon, a seu dispor.

- É esta a saída dos infernos?

- Com certeza, basta dizer "Zazas zazas Nasatanada Zazas" no reconhecedor de voz.

- O que tem do ouro lado?

- Depende. Qual foi seu crime?

- Morri sem ser batizado.

- Então você vai para os Campos Elísios - afirmou o Choronzon - pelo menos á assim desde o Renascimento.

- Fácil assim?

- Basta dizer as palavras, quer que eu anote?

- Não adianta, morri antes de aprender a ler, mas me lembro muito bem delas.

- Bem sei: a memória nunca falta num inferno responsável - filosofou Choronzon - Então a... até logo, criança - não se fala a palavra "deus", no inferno.

- Mas não deveria ser assim.

- Porque?

- Se fosse tão fácil sair, para que serviria o Inferno?

Choronzon coçou o chifre, mais por hábito, já que não possuem terminações nervosas, embora se diga que tudo, no inferno dói.

- Sua dúvida concerne à natureza do inferno?

- Sim - respondeu a criança, que já dissera as palavras no interfone, vendo a porta deslizar para o lado, revelando uma pradaria paradisíaca - o que é o Inferno, afinal das contas.

Enquanto a criança avançava pela pradaria, sentia suas feridas cicatrizando e o vento fresco portando o perfume indefinido de muitas flores.

Escutou um assovio e voltou-se. A porta do inferno estava se fechando, mas Choronzon ainda conseguiu soprar a resposta:

- O Inferno é apenas uma forma de viver.

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