SEGREDOS DO OYSTER BAR
Luís Valise

 
 

Acordo cedo. Banho, barba, batente. Banal? Não. Nos entremeios, de quando em quando, sou também assassino. Assassino profissional.

No mundo dos ricos, digo dos muito ricos, daqueles que só conhecemos de jornais e revistas, existe de tudo: luxo, beleza, arte, bom-gosto, coisas sérias e outras fúteis; negócios, bons negócios, negociatas. E traições. De todos os tipos. A maioria gera rancores passageiros, fofocas. Algumas, inimizades profundas. Poucas, bem poucas, ódios mortais. Às do primeiro tipo basta um ombro amigo. Depois, vêm os analistas. E para aqueles casos que exigem solução radical, quando não tem mais jeito, existem pessoas como eu. Não sei quantos somos, não é coisa para se alardear. E assim como eu tenho alguns poucos clientes, é bem possível que existam outros como eu, que atendam a outros tantos ricaços de bom pedigree. Creiam, existimos mesmo. Não deixamos pistas. Trabalhamos sem sentimentos. Puro business.

Uma batida na porta, é Joana, minha secretária há um bom par de anos. Para ela (na verdade, para todos) sou apenas um entediado representante comercial.

- “Seu Olegário, interurbano na linha dois. Mr. Mortensen, de Nova Iorque.”

Ele não me chama há muito tempo. A última vez foi para dar um jeito no diretor de uma estatal que havia gravado a entrega da propina. Caso difícil, o tipo era duro de roer. Tive que encostar a brasa do cigarro em sua axila para ele entregar a fita. Até hoje sinto o cheiro dos pêlos queimando junto com a carne macia. Em seguida aliviei seu sofrimento com uma bala .38 dentro do ouvido. Enrolei uma corrente de ferro, das grossas, no corpo bem alimentado do escroque, e joguei-o de uma das pontes que levam ao Guarujá. Era madrugada. Até hoje a família espera por notícias dos seqüestradores.

Demoro um pouco para atender o telefone. A lei sou eu.

- “Alô.”

- “Aqui é Mortensen. Te espero sábado, no lugar de costume.”

Desligou na minha cara, o puto. Ele é o dinheiro. E o dinheiro é tudo.

A pobre da Joana teve que se virar pra me conseguir um lugar no vôo de sexta-feira. Na manhã de sábado o tempo em Nova Iorque estava horrível, nublado, úmido, as calçadas cheias de neve. Passei o dia trancado no hotel, até a hora do encontro. Sempre nos encontramos nesta cidade, lugar improvável de sermos vistos juntos. Perto da hora marcada, saio vestindo roupas grossas em direção ao Central Park.

O hall do Plaza está movimentado, como sempre. O tapete macio, a calefação, o Oyster Bar. Iluminação baixa, balcão de madeira escura. Vejo-o sentado de costas para a entrada. Chego à mesa, o garçom puxa a cadeira, sorrindo sem me olhar nos olhos, como fazem os humildes. Sento-me defronte ao homem de cabelos brancos bem penteados. Mortensen só toma bourbon, puro. Peço o mesmo. Ele mantém o olhar no copo. Suas mãos mostram a idade. Veias azuis serpenteiam sob a pele fina. Quando meu drinque chega, levanto o copo e faço um brinde:

- À sua saúde. O senhor parece ótimo.

Ele nem dá bola. Fala baixo:

- Você já matou mulher?

Não gosto de bisbilhotices. Rodo o copo com a bebida. Dou um gole. Olho de novo suas mãos. Uma caneta pode ser uma arma terrível.

- Por que o senhor quer saber?

- Porque ela é jovem, e linda. Não deve ser fácil.

Nunca é fácil. Por isso é coisa para profissionais. A grande maioria dos meus trabalhos eliminaram homens, nenhum melhor ou pior que meus clientes, apenas estavam do outro lado do balcão. Poucas vezes tratei de mulheres. Duas, para ser preciso. Ambiciosas, micheteiras de alto coturno, dessas que enfeitam revistas e festas badaladas. No primeiro caso, simulei assalto num farol. A pobre nem tentou arrancar com o carro, eu atirei assim mesmo, depois de puxar a correntinha de ouro com a medalha de uma santa, acho que da Aparecida. Com a outra foi mais complicado, trabalho com faca. Fiz parecer caso de estupro. Tive até que comer mesmo a coitada, mas antes mostrei a camisinha pra ela não ficar com medo de Aids. Minha voz saiu tão fria, que agora ele olhou pra mim:

- Tanto faz. A única coisa é que, como sempre, eu quero saber o motivo. Detesto cometer injustiças.

- Gravidez. A puta está grávida. Não trabalho como um louco pra deixar rico um filho da puta qualquer. Só isso.

Meu preço é alto. Não digo quanto, pra não criar minhoca na cabeça de ninguém. Esse trabalho já me deu muito dinheiro. Talvez seja o último. Todo profissional, cedo ou tarde, precisa se aposentar. Curtir o resto de vida antes que venha o Inferno, que ninguém sabe se existe, mas que, se existir, eu tenho lugar cativo. Foda-se.

No domingo o Central Park está cheio de gente curtindo o sol, o céu azul, a paisagem branca. Observo as crianças correndo de um lado pro outro. Um esquilo se aproxima, olhos grandes, assustados. Sinto uma ternura repentina. Não maltrato os animais, e eles percebem.

Ela está grávida, ele disse. Eu devia cobrar o dobro.

Joana entra na sala, sorriso maroto:

- É a tal da Márcia. Já ligou trocentas vezes. Eu não contei que o senhor foi pra Nova Iorque.

- Alô.

- Oi, amor, saudades!

- No telefone, não. Te chamo mais tarde, e digo aonde nos vemos.

O nome dela não é Márcia, e é a mulher mais encantadora que conheci até hoje. Está apaixonada. Eu, quase isso. O único problema é que ela é cacho do filho da puta do Mortensen. Que também não se chama Mortensen. E temos que nos encontrar em segredo: ela é sustentada por ele, carro blindado e o caralho, veja aonde fui me meter.

Aluguei um pequeno apartamento para nossos encontros. Nos vemos duas vezes por semana. Tomamos cuidados de amantes. Andei pensando em pedir a ela que abandonasse o velho. Agora é tarde.

Ela sempre me espera dentro de um cinema, num shopping da zona leste. Eu entro depois que a luz se apaga, me sento ao seu lado, nos beijamos apaixonadamente,
conversamos baixinho, como fazem os namorados. Saímos no meu carro e vamos para o tal apartamento. Mais tarde eu a trago de volta, ela pega o próprio carro e vai para casa. Ou encontrar com o escroto. Mas hoje eu marquei encontro num cinema diferente, onde nunca fomos. Ela acha que sou cuidadoso. E sou mesmo.

Entro na sala escura e espero que meus olhos se acostumem à penumbra. O filme ainda não começou, e um trailer de ação lança flashes inesperados. Vejo-a pelas costas, sentada no lugar de costume. Entro uma fileira antes e me sento bem atrás dela. Seu cabelo está preso num coque, deixando a nuca descoberta. Ela sabe como me agradar. Ajo rapidamente, antes mesmo de sentir seu perfume, e tiro do bolso do paletó uma longa agulha pontiaguda, como um espaguete de aço. A outra ponta está recoberta por um cabo de madeira. Encosto a ponta fina e brilhante na base da sua cabeça, entre os cabelos repuxados, e antes que ela se dê conta enfio a grossa agulha até o cabo. Justo no cerebelo. Não mais que um estremecimento, como um gozo contido, e sua cabeça pende para o lado. Vai demorar um bocado para os legistas determinarem a causa mortis.

Não consigo ficar sem pensar nela. Vai ver que isso é que é amor. Não é um pensamento desesperado. É calmo, sereno, e a lembrança do seu rosto me acompanha rotineiramente. Não me interesso por outras mulheres. Pena que tenha terminado daquele jeito. Ninguém mandou ela querer tudo. Ninguém consegue ter tudo. Tinha que inventar um filho do escroto? Joana fica parada na porta até que eu olhe para ela:

- Dr Mortensen. Diz que é urgente.

- Alô.

- Sábado, mesmo lugar.

- Estou aposentado. Procure outro.

- Não dá. É muito importante. Não conheço mais ninguém. Pago o dobro.

- Já disse que parei, Mortensen. Sinto muito.

- Sábado. Não falte.

Os ricos pensam que estamos à sua disposição. Vão tomar no cu!

- Joana! Consiga uma passagem pra Nova Iorque na sexta. Vire-se!

Pra ela eu sou rico, então ela tem que estar à minha disposição. E que se foda.

Depois dos atentados ficou um saco viajar pra cá. No aeroporto me fizeram tirar os sapatos. Revista dos pés à cabeça, como se adiantasse. Contra suicida não há defesa.

Desta vez chego primeiro. Sento de costas para a entrada. Peço uma dúzia de ostras do Maine, e uma garrafa de Chablis. Foda-se o bourbon. As ostras chegam numa salva de prata com gelo picado. Fatias de limão siciliano. A felicidade só não é completa porque sinto falta dela. Imagino nós dois no Plaza, num daqueles quartos com pé direito bem alto, janelões dando para o parque, aquela cama enorme... O escroto chega, senta-se à minha frente, nem cumprimenta. Pede um bourbon para o garçom. Tento ser simpático:

- Prove o Chablis. Está ótimo.

Ele responde como se falasse sozinho:

- Isso é bebida de viado!

Não sei como ela agüentava esse escroto. Ele segue:

- Tenho um serviço delicado. Gente importante. Primeiro time.

Respiro fundo:

- Olha, eu vim até aqui porque isso não é coisa que se discuta por telefone. E também em consideração ao Sr., por todos esses anos. Mas peço que me entenda: eu parei. Stop. No more. Finito. Aquele foi meu último trabalho. Uma mulher grávida. O Sr. não vai deixar nada pra filho da puta nenhum. Mesmo sendo seu filho.

Mortensen arregalou os olhos:

- Meu filho porra nenhuma! E eu lá sou louco de dar uma bandeira dessas? Sou vasectomisado, meu filho! Há muitos e muitos anos! A putinha tava esperando filho de algum namorado, sabe como é, elas saem comigo, mas eu sei que devem sustentar algum vagabundo desses bonitinhos que andam por aí. Então quem foi pro saco foi ela e o filho de um merda desses. Mas isso não importa. O que importa é que eu quero que você dê um jeito no...

Eu ouvi tudo calado. Aquilo realmente não importava. O que importava é que eu não podia encerrar minha carreira. Ainda não.

A notícia do suicídio do figurão caiu como uma bomba. Durante dias os jornais não tiveram outro assunto. Pular daquela altura, de camisa, gravata e paletó, e sem as calças. E o que dizer do rabo frouxo, lambusado de vaselina? O Mortensen, hein?, quem diria...

 
 

fale com o autor