AUTÓGRAFO
Iosif Landau

..se Guilherme o Conquistador não tivesse invadido a Inglaterra em 1066 e se não tivesse vencido a batalha de Hastings, a língua inglesa não existiria... trezentos anos seguidos o francês foi falado nas cortes inglesas e somente depois da Guerra de 100 anos quando se estabeleceu em definitivo que a Inglaterra e a França não seriam mais um único país, surge a língua inglesa... era assim que eu iniciava invariavelmente as aulas sobre literatura (poesia) para as novas turmas da universidade, reprimia um bocejo, escrevia com preguiça nomes e datas no quadro sem me dignar olhar para eles; há muito perdera a motivação, a experiência me ensinara que dos quarenta presentes talvez apenas uma meia dúzia se interessaria e eu continuava... John Grover, um dos primeiros poetas ingleses, durante muito tempo se dedicara à tradução do gaulês Guillaume de Machaut... francês não foi apenas uma ”influência”, francês é parte do inglês, um elemento genético na sua criação e foi assim que... mas eu não era um sujeito desprovido por inteiro de alguma sensibilidade se não como poderia eu falar sobre poesia o ano inteiro embora eu achasse que os poetas eram pessoas de inteligência medíocre dotados, como os músicos e tantos jogadores de xadrez, do dom de criar maravilhas sem ter consciência da dimensão de seu feito, mas eu possuía algo perverso dentro de mim... Thomas Malory, Wyatt e Surrey, pioneiros, foram influenciados por poetas franceses ... eu chegava a insinuar que até Shakespeare e outro elisabetanos menos famosos calcavam seus trabalhos nos franceses... a poesia inglesa e americana não existiria sem a francesa... insistia eu... a tradução de LES FLEURS DU MAL de Baudelaire foi definitiva para consolidar a poesia na língua inglesa e a presença de Mallarmé ao discursar em Oxford foi um ato de grande estima por parte dos ingleses e... eu preparava as aulas enquanto andava de metrô, o metrô é uma grande invenção, ao viajar nele é que se percebe tudo a respeito da poesia, o som cadenciado, o para-anda, o desce-sobe... a conexão Paris-Nova Iorque feita pelos modernistas como Joseph Stella, Mardsen Hartley, Aerthur Dove, William Carlos William, Man Rey, Alfred Kreymorg, Francis Picabaia, Marcel Ducamp, estabeleceu o intercâmbio e depois a influência do cubismo e dadaismo de Apollinaire e o futurismo de Marinetti e... Pound, Eliot, Yeats, Ford Madox e Tzara, Eluard. Péret, Reverdy, Crecel, Aragon... ao mencionar Ezra Pound eu fazia questão de destacar que a genialidade artística nada tinha a ver com a patifaria política, eu afogava os alunos com nomes, insistia na pronuncia exata, ortografia correta, não me importava com as risadas, as tosses fingidas, aos gestos obscenos, às vezes dois ou três se manifestavam, alguns pretendiam se tornar escritores, eu pegava a deixa e excursionava pelo mito do jovem escritor que emigrara para Europa com intuito de aprendizagem, o fascínio de Paris, me detinha em Hart Crane, Hemingway, Gertrude Stein, Fitzgerald, Faulkner, John dos Passos, Thorton Wilder, Williams, Pound, Eliot, Henry Miller, Anaïs Nin... poucos sabiam da minha fixação pelo metrô, nem eu entendia direito o que acontecia, às vezes pensava nos amigos, na minha adolescência, no semblante dos rapazes daqueles tempos, bem, não era bem pensar, apenas via... mas acabava por me fixar nas aulas... dizem por aí que pensamos sem querer, que estamos aqui e ali ao mesmo tempo... os poetas franceses do século vinte... destacava eu... nem todos eram nascidos na França embora fossem considerados franceses.. .Apollinaire em Roma, Milos na Lituânia, Segalen viveu muito na China. Cendrars na Suiça, Superville nasceu no Uruguai, Tzara na Romênia, Jabés no Cairo, e... e... Larbaus, Fargue, Saint-John Perse. Élouard, Ponge, Valéry, Claudel... obcecado massacrava os alunos, aborrecia meus interlocutores, cultos e incultos, misturava uísque e poesia, um porre... mas não enchia ninguém no metrô, era meu templo, rezava minha vida ali... um dia comecei a sentir algo, no percurso sub-terra, lembranças, do meu velho, minha velha, da irmã, das aulas de francês, da viúva que me ensinava o francês, via o rosto deles todos, acho que estão mortos, que burrice, estão mortos mesmo, eu mesmo os enterrara, com exceção da viúva que morrera na França, as imagens do enterro esquecidas, a viúva que era francesa, antiga cortesã da Lapa quando velha, virara professora, nada de gramática, só conversação, nada de sacanagem também, muita poesia, recitava sem parar, quando eu pedia para traduzir ela respondia: mon petit, impossible traduir cela! c’est une folie... eu me perguntava sempre... de onde ela tira essa droga?... morreu mas a poesia ficou lá, num canto do meu cérebro e eu me lembrei dela justo na estação da Lapa... c’est vraiment une folie... a thousand year - old culture desintegrated, there are columns and no supports, no foundation anymore – they have all been blown up, the meaning of the world has disappeared! eu gritava dramaticamente a citação de Hugo Ball ao iniciar as aulas de poesia francesa de depois da guerra de 18, obrigava os alunos a repetir até exaustão... the meaning of the world has disappeared, eu declamava aquilo sem cessar na solidão do meu quarto em frente ao espelho, nu como uma minhoca, obcecado por algo que minha pobre inteligência não alcançava mas aquilo flutuava como um zumbido, acariciava minha pele... agora sei, aquilo me preparava para um salto imprevisível num abismo... como escrever? respondam! por que escrever? o que é escrever?... ninguém ousava... a pergunta é a resposta! eu falava com sabedoria exagerada, ao pedirem explicação eu rebatia com as palavras de Roche: “a poesia é inadmissível, além do mais ela não existe” e dava por encerrado o assunto... eu sofria de visões, viajar num ônibus interestadual, olhar pela janela, ver como tudo ficava para trás, tudo despedaçado, a paisagem quebrada, se afastando e aí eu tinha um acesso de riso, me achava muito sábio por ter lido muitos livros, por ensinar, algo difícil, profundo, que piada, o trapezista do circo era melhor que eu, é muito difícil ser trapezista... o poeta antes de mais nada tem que observar como se tudo aquilo fosse visto pela primeira vez, como se nunca fora visto antes e assim com um pouco de sorte transformar tudo em palavras... quem diz isso não sou eu! gritava para eles... foi Ponge, portanto seus animais, me apresentam para a próxima aula algo sobre o prosaico, cotidiano, o arrumar uma cama, o destampar uma garrafa de cerveja, o enxugar a mão, colocar uma cadeira num canto de uma sala... coincidências, não as utilizem para criar ilusão, para explicar, para relacionar atos, é um mecanismo ultrapassado, o “happy end”... mas eu era obcecado pela coincidências como por exemplo a aparição de nomes como Wellington, Jefferson, Roosevelt nos negros, com o pensar em alguém não visto durante anos e encontrá-lo no dia seguinte, ou ao marcar consulta com um médico pela primeira vez e o consultório ser em frente à minha casa, no mesmo andar que o meu, ou números telefônicos de conhecidos serem diferenciados apenas pela inversão dos dois últimos dígitos... destino? teoria das probabilidades? Artur Koestler escrevera um livro inteiro demonstrando a inexistência das coincidências, mas criou uma ao se suicidar com sua mulher no mesmo dia, hora... foi coincidência que mudou o rumo de minha vida... terminara de traduzir alguns poemas de Rimbaud, a crítica não me fora favorável mas... sempre temos dois tipos de leitura, eu dizia à turma, os críticos que julgam pelo que não foi dito e os leitores que lêem o que foi dito, lembrem-se sempre dos leitores, afinal os críticos tem que criticar... questionamento social nas minhas aulas não era bem vindo, eu não simpatizava com a multidão que rastejava nas periferias das grandes cidades, a não ser com as prostitutas e velhos aposentados, tinha raiva do aconchego dado pelos evangélicos, pela burguesia investida de remorso... a arte está acima do bem e do mal? escrevam algo a respeito. não esqueçam do filho da mãe de Celine...

Convite para conferenciar em uma capital do Norte com passagem e hospedagem pagas interrompeu minha arenga semanal, larguei os alunos aos cuidados do adjunto, embarquei ao chamado do amigo com quem sonhara dias antes recitando Rimbaud.
Um homem balançava a cabeça, não me parecia um gesto de admiração, as mãos trêmulas diante do espelho, o risinho um escárnio permaneceu no rosto dele enquanto avançava em minha direção, ninguém no toalete do aeroporto, era preciso falar indagar... posso matá-lo agora... sua boca abria e fechava ao repetir sem cessar as mesmas palavras, meu olhar, minha falta de ar acompanhavam o estranho, passo a passo, metro a metro, a visão repetida nos espelhos, eu recuava passo a passo, metro a metro, o riso uma risada, gargalhada vigorosa, feliz... você tá ferrado... tentei retornar à segurança, simulação idiota do medo? jogo ridículo, inverossímil, ri também, o riso dele pregado nos espelhos, a lâmina apontava... não me reconhece?... diante do silêncio da minha resposta o homem explodiu em nova gargalhada, o contemplei fundo nos olhos, vesti a couraça da loucura e acertei um soco no nariz dele, não dei tempo às estratégias, segurei o braço armado, os mestres do aikidô me guiaram, a lâmina entrou na barriga fofa, refiz o movimento, ele estendeu o outro braço, timidez no seu olhar, calafrio me estremeceu, alegria indesejada me possuiu, ele tentou dizer algo, sinalizar, a ultima gargalhada interrompida de súbito, filete de sangue no canto da boca, queixo caído sobre o peito, ri desesperado, ele abraçado ao vaso, guardei o canivetão, o coloquei no meu bolso.

– ele te encontrou? –, falou ela –, não se preocupe, ele sabe do nosso caso, viemos assistir o ciclo de palestras na universidade, foi uma longa viagem do Sul, mas ele é louco pelos poetas franceses, discordava de sua tradução do Rimbaud, ele me disse que te pediria um autógrafo, você o deu?...o que tem? está pálido, já te falei que ele sabia...falou-me ao embarcarmos que durante a palestra decretara anistia...e depois? não esquenta, sempre ajeitei tudo entre ele e meus amantes...


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