O ESCORPIÃO
NEGRO
Eduardo Prearo
Pouco batalhador, assim é Amadeus. E o que o chateia mais ainda é estar tranquilo diante dessa constatação e também de outras. Não é um bom vendedor, esqueceu-se do conteúdo dos cursos de vendas, mas o que fica na memória é cultura, não é? Aflorará a tristeza, ele tem certeza, mas ela o tornará menos culpado? As pessoas têm tantos problemas, o dia está tão chuvoso! Tudo é cinza, até mesmo o eternamente tímido Amadeus, um ser cinzento. Só o guarda-chuva dele é que é azul, de um azul quase cobalto. Pois eu sei me virar, eu sei me virar, dizem-lhe os colegas enquanto a vida continua...
Chega em casa, ou melhor, no teto do momento, acende a luz e fica se observando no espelho. Há ser humano mais acabado? Pendura a pólo amarela molhada no cabide e o cabide no cano do chuveiro. Disseram-lhe que a pólo era amarela, a cor da mente, mas Amadeus a vê cinza e a vida anda em branco e preto. Na folhinha de mesa, uns corvos de Van Gogh, sexta-feira, dia em que os homens lembram-se de que são felizes. O vento molhou a camisa, apesar do guarda-chuva azul. O vento não descabela Amadeus, que é calvo. Entre flores e calvíce há alguma relação? Não sabe, mas talvez haja uma entre nudez e fome. Abre o iogurte de aroma artificial de pêssego e antes de bebê-lo pensa nas fomes futuras e também no quanto esse pensar talvez seja pecado ou falta de respeito devido à situação da África. A cadeira é de plástico, São Jorge não sai do cavalo --- e nem liga pra Amadeus! ---, mais um dia se foi...
A Ciclana que Amadeus xingou não
o perdoará assim tão facilmente, a não ser que ele... É
insano pensar nisso, mas uma organização inteira contra somente
uma pessoa e por causa de mulher, de uma funcionária excelente e sem
defeitos! Calma, não se revoltem também contra Amadeus! Há
um escorpião andando pelo chão, um escorpião negro. Amadeus
cata-o com extremo cuidado, colocando-o num vidro que contém um pouco
de álcool. Senta-se, então, na cama, põe o vidro tampado
sobre a escrivaninha e fica vendo o escorpião, animal agora desesperado.
A vida está tão dura e Amadeus continua mole, não se fortifica.
Aliás, a miséria não o fortifica. Quando os tempos são
difíceis --- haverá um mais difícil do que esse? ---, Amadeus
tem vontade de deslizar, sim, de deslizar sobre o chão. Porém,
ele só consegue deslizar mesmo nos sonhos. Quanta preocupação,
quantas lições de vida as pessoas têm necessidade de lhe
dar; Amadeus devia estar bem de vida, mas vive brigando com todo mundo, e se
notam-no assim, querem puní-lo, mas não logo. Assim não
há quem tenha direito à sobrevivência! Amadeus fez um balanço
há um mês e chegou à conclusão de que sua situação
ou está no oito ou no oitenta. O oitenta, obviamente, é a pobreza
para o rico. Por que o domingo tem sempre que ser barulhento? Pedir a quem por
um bom emprego, a São Francaccio, a São Bartolomeu? O artrópode
noturno de repente pica a própria pata e morre defronte de Amadeus. Não
haverá mais dias felizes, não haverá mais anistia, está
tudo acabado. Amadeus levanta-se e toma uma drágea qualquer de qualquer
coisa, toma uma, depois duas, três, dez. Agora ele está estranho,
em uma espécie de escuridão, diferenças sutis entre a vida
e a morte. Putzzzz (sic).
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