SABOR DE ANISTIA
Edson Campolina

A cabeça apoiava-se na janela do ônibus ajudando-o a carregar o peso da tristeza, do infortúnio e da decepção de ser malquisto por sua mãe-pátria. A viagem aproximava-se do fim, sua pior parte. Pensava ele em mais um desembarque doloroso naquela estranha terra, há 10 anos. Evidenciava-se a sensação de abandono e solidão quando se deparava com a multidão inquieta do terminal rodoviário. Inutilmente, sempre um fio de esperança escoria-lhe pelas artérias fazendo-o procurar alguém querido a recepcionar-lhe nos desembarques. Até então a decepção secava-lhe o fio de esperança em todo final de linha.

Um exilado sempre tem a sensação de ser observado por olhares estranhos numa multidão, mais ainda um exilado solitário. Assim sentindo-se apressou-se em direção ao táxi, driblando os corpos que enchiam o saguão. Ansiava pela segurança e conforto de seu minúsculo apartamento, onde comungava sua solidão, regada a capuccino no frio dos Andes, com Fernando Pessoa e outros poetas aos quais chamava de “Companheiros”. Seus versos ajudavam-no a aquecer a alma.

- Alberto! Alberto!

Demorou um instante até que reconhecesse seu codinome no sotaque portenho. Parou e virou-se. Uma morena magra puxando uma maleta de rodinhas corria em sua direção abanando a mão direita no alto. Reconheceu sua companheira de cátedra Elena.

- Dispense o táxi, te levo em casa.

Elena não chegara de viagem, tampouco partiria. Descobriu que o esperava no terminal. Não fora propriamente recepcionado, tudo pareceu uma coincidência.

- Preciso saber do seminário, teve dificuldades com o idioma?

- Conversamos após um banho, ainda estou zonzo com as curvas do ônibus. Esta Cordilheira não só nos faz sentir a alma pequena como a chacoalha.

Alberto demorou-se no banho quente. Distraído, secando os cabelos já raros, surpreendeu-se com a cena digna de pintura. Elena trouxera na maleta um jantar quase completo e a decoração romântica de uma mesa de seu restaurante preferido em Santiago. Em silêncio e em poucos minutos, removera todos os livros sobre a mesa, cobriu-a com uma toalha de renda. Dois castiçais com três velas cada, lembrando-lhe os da capela que servira como coroinha em Minas, provocavam a penumbra na sala-quarto. Taças grandes para vinho e uma bandeja com carpaccios e queijos diversos em cubos.

Alberto ficou imóvel na soleira do banheiro. Elena vestia uma curta camisola negra, de alças finas e rendas nas barras. Cabelos enrolados e jogados sobre o ombro esquerdo, deixando o pescoço à mostra. Sentada de frente a Alberto e de pernas cruzadas, ofertando suas coxas ao deleite do seduzido, estendeu a mão e, com um sorriso quase sádico, ofereceu o saca-rolha ao exilado.

- Faça as honras de abrir um delicioso vinho chileno.

Alberto hesitou, mas não tinha saída. Todo o clima criado por Elena merecia preservação. Correspondeu à ousadia de Elena e, ainda de roupão, tímido e trêmulo, sentou-se e abriu o vinho, servindo as taças. Brindaram em silêncio. Degustaram alguns queijos, ainda em silêncio. Uma aura de expectativas tomou a mesa. Não arriscavam aflorar qualquer assunto. Alberto fazia uma rápida retrospectiva dos contatos quase diários com sua colega de ensino. Como não percebera suas insinuações? Como não percebera sua delicada beleza? Trocavam olhares e sorrisos tímidos.

- O tempo que lhe dera esgotou, esperei muito uma iniciativa sua. Resolvi atacar.

- Reconheço que foi um golpe bem planejado, com armas precisas atingiu-me de surpresa não deixando escape.

Elena pediu-lhe a mão e, levantando-se, o fez também levantar da cadeira. Abraçou-o e beijou-lhe ardentemente. Um frio subiu-lhe pelos pés tomando todo seu corpo deixando-o extasiado. Segurou o rosto de Elena pelos maxilares com as duas mãos, afastou um pouco o seu, e observou seus negros olhos que brilhavam umedecidos. Trocaram carícias até deitarem-se na cama desarrumada.

Alberto acariciava os cabelos sedosos de Elena que adormecia em seu peito. Extasiado, olhava o escuro do teto. No regozijo daquela noite, pensou no sabor da anistia. Devia ser como uma noite calorosa como a pele morena da portenha, e doce como seus beijos apaixonados. E adormeceu mais uma vez naquela terra estranha. Amanheceu e levantou-se se debruçando à mesa, bebeu um gole do vinho e espantou a solidão escrevendo:

DISTRATO

Minha amiga Lua,
Devolva as recomendas minhas.
Longo tempo faz com meus recados.
Sem rancor e mágoa alguma,
Já não desejo que entregues à minha amada.
Teu tempo passa em um vagar sábio.
Faz que os amores esclareçam,
Sob tua presença e luz,
Alternando dispensa e querença.
Dispenso-te minha sempre companheira Lua,
Das recomendas de outrora, grato...
Espero quando ao seio de minha amada,
Ouvindo o mar, o rio, a noite,
Tuas estrelas admirar, sem querer escolher,
Ou contar.
A te cantar estaremos.
Lua, amiga Lua!
Tu és bela pela alvura de tua luz.
Muito mais por ser ainda
Nossa ouvinte testemunha.

 

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