PERDÃO
Cristina Del Nero

Fazia dois dias que o patriarca da família havia sido enterrado. Solteirão e rico do jeito que era, ninguém da família ficou fora do seu testamento. Todos se reuniram na velha mansão do patriarca, loucos para botar a mão em algum dinheiro. Depois de abrir o testamento, o testamenteiro inicia a sua leitura:

- Para o meu irmão Carlos, deixo o perdão pela dívida do dinheiro que eu emprestei para ele.
- Como assim? A única vez que eu lhe pedi dinheiro emprestado, foi aos 12 anos. Usei pra comprar
figurinhas.
- Desculpe, senhor. Eu estou aqui para garantir que a vontade do falecido prevaleça.
- Mão de vaca.
- Posso continuar? Para o meu irmão Rodolfo, deixo o meu perdão por todas as vezes que fui
insultado.
- Desgraçado.
- Para o meu sobrinho, Rodrigo, deixo o meu perdão pelo roubo da Playboy com a Helô Pinheiro na
capa.
- Nossa, Rodrigo, quantos anos você tinha?
- Uns 8.
- Para a minha sobrinha, Fabiana, deixo o meu perdão por todos os seus olhares de desprezo.
- Velho tarado.
- Para o meu sobrinho, Júlio, deixo o meu perdão por todas as vezes que ele me bajulou para
conseguir a indicação de um emprego. E por ter perdido todos.
- Carrasco.
- Para a minha cunhada, Clara, deixo o meu perdão por todas as vezes que ela não me convidou
para a ceia de natal.
- Mas precisava convidar?
- Para a minha cunhada, Arlete, deixo o meu perdão por ela ter passado a vida inteira falando mal
de mim pelas costas.
- Está vendo como eu tinha razão?
- E finalmente, para a Srta. Lemos, a minha prima de Taubaté, eu deixo a minha mansão e toda a
minha fortuna.
- Quem?
- Srta. Lemos, a prima de Taubaté.
- Mas nós não temos nenhuma prima em Taubaté. Ou temos?
- Que eu saiba, não.
- Senhores, por favor. Se os senhores me derem licença, eu chamarei a prima de vocês aqui.

Segundos depois, mais de 1 metro e oitenta de mulher entra na sala. Ela não devia ter mais do que 30 anos.

- Senhores, essa é a Srta Lemos, a prima de Taubaté.
- A senhora é prima do falecido?
- Hum, hum.
- Aposto que ela nem veio de Taubaté.
- Senhores, por favor. Respeitem a vontade do falecido.
- O falecido era o meu primo mais querido.
- Sei, sei.
- Pra mim chega. Eu quero que o falecido pegue todos os seus perdões e enfie naquele lugar.
Vamos embora, Rodolfo.
- É isso mesmo. Isso não vai ficar assim.
- Onde já se viu? Sua aproveitadora.
- Caipira.
- Sem vergonha.
- Liliconada.
- Senhores, por favor, não vamos por tudo a perder.
- Mas nós não temos mais nada a perder.
- Desculpem, mas eu ainda não mencionei o último desejo do falecido.
- Que último desejo?
- O que foi escrito momentos antes dele morrer.
- E qual seria?
- Se algum dentre os presentes, receber a Srta. Lemos como a prima mais querida da família, este
ficará com a minha fazenda em Taubaté.
- A fazenda é grande?
- Rodolfo, tenha dó. Deixa isso pra lá.
- E nem adianta mais. A essa altura, todos nós já insultamos a prima.
- Eu não - grita Rodrigo, um dos sobrinhos.
- Filho, você não vai se sujeitar a isso, vai?
- Claro que vou.
- Bem senhores, isso é tudo. Se os senhores me derem licença, eu já vou indo.
- É isso mesmo, todo mundo pra fora. Eu e a prima temos muito o que conversar.
- Rodrigo, se você ficar do lado dela, você está fora dessa família.
- Muito bem. Eu e ela começaremos uma outra família, não é priminha.
- É.
- Eu posso até morar aqui, se você quiser.
- Claro.
- Além do mais, eu sempre quis ter uma prima.

Meia hora depois, Rodrigo volta pra casa e, de joelhos, pede perdão ao resto da família. A prima, na verdade, não era prima, nem mulher. E carente do jeito que estava, o Lemos não esperou nem o defunto esfriar. Atacou Rodrigo com unhas e dentes. Parece que a Playboy com a Helô na capa era só fachada.


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