DEFINITIVAMENTE,
ENTRE AS ESTRELAS
Bárbara Helena
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A meio do inverno descobri, finalmente,
que havia em mim um Verão invencível"
( Albert Camus )
Algumas pessoas nascem com sorte, outras
não.
Sempre penso nisto quando olho para minha mãe. E também quando
me olho no espelho. Somos duas perdedoras.
Meu pai não é perdedor, ele não existe - apenas seu deus
se manifesta nele. Não sei quem é esta pessoa que me transmite
as ordens de Jesus. Por momentos penso enxergar algo humano nos intervalos,
mas é tão fugidio que se perde antes de chegar aos lábios
finos ou aos olhos frios. Meu pai odeia tanto a alegria e a beleza que se casou
com minha mãe para perpetuar através dela nossa falta de atrativos.
Mas não continuarei esta cadeia infinita de mulheres feias e aprisionadas.
Não arranjarei um bom irmão para casar entre outros pobre-coitados
como eu ou fanáticos como ele.
Sou sua cruz e desgosto. Não fosse tão conformado
à vontade do seu Cristo, já teria desistido de mim, da minha falta
de fé, do meu gosto pelo riso e pela ironia.
Minha mãe talvez tenha sido assim algum dia, talvez tenha desejado ser
feliz. Será que amou meu pai, seus belos olhos verdes, seus cabelos claros?
Pobre mamãe, o casamento com um robô sem alma, a transformou nesta
pobre repetidora de versos bíblicos, de saia comprida e cabelo preso,
nesta religiosa frágil que enxerga a vida como vidro embaçado,
através de um carro em disparada. Nunca soube frear, nem dirigir. Obedece
a meu pai como as sementes nascem da terra ou o sol se põe no horizonte.
Acho que nunca fui jovem. Nasci velha, entre Bíblias e panfletos, ouvindo sermões e vendo pessoas orando. Na nossa Igreja não há música como em outras, é tudo coisa do demônio, a figura misteriosa que rege tudo de bom, de desejável e de belo, contra quem meu pai deve lutar incessantemente para que nunca, em tempo algum, pessoas sejam felizes neste vale de lágrimas.
Prima Verônica pertence a outra Igreja onde todos cantam e dão as mãos e podem usar vestidos curtos e calças compridas. . Apesar de ser filha de seu único irmão, meu pai odeia prima Verônica apenas porque ela é bonita. E porque ri, é alegre e traz para mim os únicos momentos felizes que já tive nesta vida miserável. E, claro, porque seu Jesus é menos deprimente.
Eu adoro a prima Verônica. É a única pessoa que eu amo nesta vida. Quando eu tinha sete anos ela me deu uma pulseira de ouro pintado, com pequenos pingentes pendurados - um leão , um sol, um peixe, uma sereia e uma estrela. Disse que guardasse para ninguém ver. Fiquei sem respiração. Era a primeira vez que eu percebia ser possível enganar papai. Escondi a pulseira debaixo do colchão e até hoje é meu maior tesouro. Sempre que termino o serviço da casa, vou até meu quarto, tranco a porta e coloco no braço aquele pequeno pedaço de proibido. Ela brilha sobre a carne clara e por alguns pequenos momentos estou livre, feliz, sou alguém.
Sou grata á prima Verônica por ter me dado estes minutos de beleza.
Depois ela nunca mais me deu atenção. Na verdade nem sei porque frequenta a nossa casa, já que papai a hostiliza abertamente, mamãe não levanta os olhos para ela e nem sabe que existo apesar de minha devoção canina.
Mas hoje foi um dia especial. Prima Verônica veio aqui para discutir assuntos das duas Igrejas com papai e tomamos chá. As xícaras estavam arrumadas sobre a toalha, e algumas irmãs fizeram biscoitos e bolo. Pude comer sem culpa. Não estarei afrontando os irmãos da Etiópia porque as guloseimas foram aprovadas pela alta cúpula da Igreja e servem ao sangue de Jesus. Depois que todos foram embora, papai me deu um olhar severo, indicando que deveria ir para a cama. Eu obedeci com a alma em festa. Estava feliz, agradecida por aqueles momentos de felicidade, por ter visto os cabelos claros, compridos e brilhantes de prima Verônica sem que o diabo viesse me buscar pelo pecado da admiração invejosa.
Saímos mamãe e eu, ela me abençoou e fui para o quarto.
Mas o coisa ruim está me tentando - quero ver uma
última vez aquela que me ensinou ser possível pecar sem castigo.
Desço silenciosamente a escada.
Sussurros estrangulados partem da biblioteca. Parecem
gemidos. Assustada, dividida entre a preocupação e o medo aterrador
de papai, entreabro a porta.
Nunca vou esquecer esta cena - meu pai nu nos braços de prima Verônica
num abandono lascivo, ela com os lindos seios a mostra, lábios entreabertos.
Pela primeira vez em toda a minha vida eu estava absolutamente calma. Fui até a despensa, apanhei o veneno para matar ratos e, sem ser percebida, coloquei nas xícaras, ainda intocadas, de chocolate. Pela fresta entreaberta, vi quando o tomaram entre beijos. Prima Verônica ainda fez uma careta, mas estava tão entretida com papai que nem reparou no gosto amargo da morte.
Depois vesti os dois, coloquei sentados nas cadeiras como convinha a membros sérios da Igreja e comecei a rir.
Ri durante uns bons cinco minutos por tudo, pela prima
Verônica e seus cabelos de sereia, pelo meu pai, por minha pobre mãe
inocente e principalmente por mim.
Depois bati a porta e sai.
Definitivamente, entre as estrelas.
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