CRÔNICA
INDIGNADA DE UM ALLEGRO MISANTROPO VIII
Sérgio Galli
(uma fábula pós fim da
história, pós-moderna, cosmopolita, techo, da era da informação)
(ao som de Flamingo Sketches
de Miles Davis)
A leitura equivocada e apressada por
vezes, interesseira das teorias de Charles Darwin trata a evolução
em uma linha reta em progressão na qual, o fim glorioso, o auge da seleção
natural seriamos nós, os humanos (claro, os da civilização
ocidental judaico-cristã). Seria armadilha do destino? Armadilha conceitual?
Armadilha ideológica?
Mas esse raciocínio torto que mesmo assim foi muito útil
à algumas teses positivista, ao iluministas e, agora, aos reacionários
pós-modernos pode servir para uma nova tese evolucionista e uma
nova espécie que surge e passa a ser dominante. Vamos -- em tempos de
velocidade e pressa isto é muito importante, afinal, não há
tempo a perder, ou tempo é dinheiro --, fazer uma rápida síntese
histórica.
Depois da explosão do cambriano (há uns 500 600 milhões
de anos) a vida explode no planeta Terra. Os enormes dinossauros predominavam.
Veio a extinção dos dinossauros (65 milhões de anos atrás).
Os mamíferos (entre eles os primatas) são os maiores vertebrados.
Na seqüência erroneamente ensinada nas escolas e largamente disseminada,
o homo erectus, o homo de neandertal, o cro-magnon, o homo habilis, o homo sapiens.Ufa!
Mas tem mais, o auge do auge,o homo ludens! Sua primeira invenção
tecnológica foi o tacape. Era o caçador-coletor. Com a agricultura,
as revoluções industriais, a técnica, a tecnologia e a
ciência levaram o homo ludens à tornar-se o deus ex machina. Veio
o século XX. Vieram as Duas Grandes Guerras Mundias. E, pós, Verdun,
Dachau, Stalingrado, Hiroxima.... o homo demens. Nada é comparável,
seja do ponto de vista evolutivo, histórico, sociológico, psicológico,
antropológico, biológico... Com ele, confunde-se o homo consumidorum.
Mas ainda não chegamos ao fim. Entramos no século XXI, o Terceiro
Milênio. Transgênicos. Cibernética. Cyberespaço. Celular.
Bits. Internet. ADN. Blogs. Bugs. Bush...tv digital. Domingão do Faustão.
Ratinho. E surge o ponto final da evolução. Tecnologia de últissima
geração: o homo automobilis ou o homo petrolum. Na realidade,
é apenas mais um ramo, descendente do ancestral comum, e um primo-irmão
do homo demens. A superação da superação. O supra-sumo.
Muito mais que o supermen.
O homo automobilis são os seres dominantes, predominantes, arrogantes,
o predador-mor da Sociedade da Informação. Da era digital. As
megalópoles, as grandes e médias (talvez algumas pequenas ainda
resistam) cidades já foram invadidas, tomadas, domadas, saqueadas, destruídas,
tornaram-se reféns do homo automobilis. Tornaram-se inviáveis,intransitáveis.
A ruas são o território livre desse predador, ou o retorno do
caçador-coletor. As pessoas/cidadãos, seres já quase extintos,
ou viram escravos ou na versão homo pedestrum são perseguidos
implacavelmente até a morte.
Claro, trata-se de um ser ultra-sofisticado, ultramoderno. Mesmo sendo um predador-caçador,
o homo automobilis não uso o primitivo tacape. Isso seria muito sanguinolento,
anti-higiênico. Tem de se seguir, afinal, é a sociedade o espetáculo,
a técnica óliudiana, ou seja, violência soft (o anglicismo
é auto-explicável), ou glamorizar a violência, estetizar
a violência. Em sua fúria assassina, o homo automolis, produto
de tecnologia de ponta, comete a crueldade light ou diet, ao atropelar, preparar
esparrelas a um incauto, intrometido, intruso, imprudente, impensado, homo pedestrum.
Violência asséptica. Anódina. Anônima.Solerte. Solitária.
Solidária e cúmplice com os outros homo automolis que assistem
a tudo escondidos por detrás de vidros escuros ao mesmo tempo em que
fala ao telefone móvel.
O estratagema parece que deu certo. Esse monte de lata se junta a um naco de
carne e ossos, transmutação que tornou o homo automobilis a deixar
seus cruéis e perversos antepassados Genghis Khan, e tantos outros
que não cabe aqui enumerar parecerem anjos de candura. A desgraça,
a destruição, as mortes causadas pelo homo automobilis fazem da
peste negra, ocorrida na Idade Médica e que dizimou milhares de pessoas
na Europa, parecer apenas um leve surto de gripe.
Enquanto o homo automobilis aterroriza, pratica a pilhagem, recolhe o butim,
toma conta das ruas, avenidas, alamedas, estradas, calçadas, casas, edifícios,
palácios, florestas, os poucos ainda homo sapiens demens restantes recolhem-se
ao conforto moderno e tecnológico de suas tocas, cercados de um arsenal
de quinquilharias eletrônicas, a tramar e planejar novos conflitos, intrigas
e guerras, a se reproduzir na vã esperança de impedir a extinção
da espécie...
Sugestão de leitura: Aventuras e Descobertas
de Darwin a Bordo do Beagle, Richard Keynes, Jorge Zahar..
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