TOCAIA DE MENINOS,HISTÓRIA
DE HOMENS
Glauber Ramos
Não eram irmãos, mas laços
muito mais fortes que os da consangüinidade uniam os três meninos.
Sempre inseparáveis: Aristides, Ozimar e Dico. Fosse para soltar pipa,
jogar bola de gude ou enfrentar algum garoto mais velho, nenhum deles arredava
pé, mesmo sabendo que cada um, ao chegar em sua casa, sentiria o peso
do chinelo da mãe e o cheiro de couro do correão do pai.
Foi num setembro, tempo de soalheira e fortes ventos. A poeira não tomava
assento, deixando a vista embaçada e a pele encardida. Foi justo naquela
época que a misteriosa caravana chegou na cidade. Homens, mulheres e
crianças que falavam numa língua estranha, vestiam roupas exageradamente
coloridas e usavam despudoradamente, principalmente as mulheres e os homens
mais importantes do grupo, anéis de pedras coloridas, braceletes de prata
e correntes de ouro. Eles, os ciganos, armaram acampamento no campinho da cidade.
As mães temiam pela segurança dos filhos menores, pois a má
fama de seqüestradores de rebentos que a raça cigana possuía
já percorrera meio mundo. Os maiores, porém, saíam aos
grupos da escola em direção ao campinho. Dos três amigos,
Aristides era o mais excitado com aquele novo universo. Já Ozimar não
demonstrava tanto interesse, enquanto Dico era o mais preocupado.
- Meu avô disse que os ciganos sabem transformar chumbo em ouro! - disse Aristides aos dois amigos, apressando o caminhar em direção ao acampamento.
- Eu não acredito! - desenhava Ozimar.
- Eu acredito! Mas eles também são feiticeiros e ladrões! - dizia Dico receoso, quase decidido a voltar.
De longe, a tenda principal facilmente se
confundia com um circo. Somente chegando mais perto era possível divisar
as pessoas em seu interior. Uma intensa movimentação de mulheres
no preparo das comidas, enquanto alguns homens descarregavam grandes baús,
ao passo que outros simplesmente fumavam e conversavam desinteressados. A cerca
do campinho era a fronteira entre o velho e o desconhecido, o banal e a novidade,
o sagrado e o profano. Dali ninguém ousava passar.
A verdade é que não se via nada de interessante, a não
ser a movimentação daquelas pessoas estranhas no interior de suas
tendas. A maioria dos garotos começou a voltar para casa assim que a
tarde caiu. Aristides parecia ser o único disposto a ficar ali até
amanhecer, não fosse o medo da surra ele ficaria. Ozimar já estava
aborrecido, enquanto Dico não escondia o sentimento de alívio.
No momento em que os três deram as costas para o acampamento, uma voz
de candura angelical os surpreendeu:
- Vocês não querem conhecer
o nosso acampamento?
Ozimar tomou-se de um misterioso encantamento, não pensando duas vezes
em ultrapassar a cerca. Aristides seguiu em séqüito. Dico os acompanhou,
num andar de corpo sem alma, mãos geladas de cadáver.
- Desculpe, eu não me apresentei. Meu nome é Morgana!
- Eu me chamo Aristides. Esse aqui é o Ozimar. Aquele lá é o Dico! - Aristides parecia ser o único em condições de responder, já que Ozimar estava mergulhado num profundo estado hipnótico, e Dico tomado pelo pavor.
Morgana conduziu os três até a tenda principal. Ozimar a seguia onde quer que fosse. Foi preciso que Aristides o segurasse pelo braço para que ele não adentrasse uma espécie de sala onde Morgana se enfiou por alguns instantes. Voltou seguida por um homem corpulento, coberto de ouro e pedrarias. Ele sorriu simpaticamente para os garotos, mostrando toda sua coleção de dentes dourados.
- Este é o meu pai!
Aristides foi o primeiro a cumprimentá-lo. Ozimar estendeu o braço mecanicamente, como um zumbi. Dico, do mesmo modo, com a diferença que sua mão extremamente gelada provocou espanto no homem misterioso.
- Está com fome, garoto? Vamos, vou mandar preparar algo para vocês! Antes que eu me esqueça, meu nome é Ramirez, líder dos ciganos.
Morgana e Ramirez entraram na sala, seguidos pelos três meninos. O chão era coberto por imensos tapetes iranianos e afegãos. Não havia cadeiras ou mesas. Os convidados alojavam-se sobre dezenas de almofadas multicoloridas, forradas com fina seda chinesa. Ramirez ergueu as mãos sobre a cabeça e bateu duas fortes palmas. Em poucos minutos, duas ciganas gordas e já de certa idade adentraram o ambiente, trazendo uma bandeja com vários tipos de bolo, além de sucos variados e chá. Aristides foi o primeiro a comer. Ozimar não sabia se fitava a comida ou a ciganinha. Já Dico olhava atentamente para o fundo do copo, como se procurasse algum vestígio maligno de feitiçaria.
- Não tenha medo! - disse Ramirez sorrindo. - Para provar que não minto, também beberei um copo de suco! Saúde, meu jovem! - e brindou com Dico, que finalmente bebeu o líquido.
Após o lanche, Ramirez pediu que a filha se retirasse. Ozimar chegou a se levantar para segui-la, mas foi contido pelos colegas. Ramirez, que até então se mostrara sempre simpático e sorridente, enrijeceu o semblante, abaixou a cabeça por alguns instantes, começando a falar em seguida, olhando um a um os garotos no fundo de seus olhos assustados:
- Meninos, quando permiti que minha filha os convidasse para conhecer o nosso acampamento, foi por um motivo especial. Certamente vocês já ouviram muitas histórias sobre os ciganos, principalmente as que falam mal da gente, não é mesmo Dico?
O menino ficou extremamente vexado, a face enrubescida e olhar cabisbaixo.
- Desculpe, Dico, eu não quis envergonhá-lo, até porque você não tem culpa, você é apenas um garoto e sabe pouco da vida. Mas saibam vocês que o meu povo sempre foi perseguido, desde épocas muito remotas. Muitos pagaram com a própria vida. Quando as pessoas nos vêem vestidos assim, usando jóias caras, ou comprando cavalos de raça, nos tratam por ladrões, aproveitadores, o que não é verdade. O que possuímos é fruto do nosso trabalho e inteligência...
Os garotos permaneciam imóveis, atentos a cada palavra saída da boca de Ramirez.
- Mas também é verdade que o nosso povo possui segredos que não podemos revelar. Porém, garotos, hoje eu abrirei uma exceção! - Ramirez levantou-se, adentrando um quarto contíguo à sala.
Retornou trazendo uma espécie de gaiola encoberta por um tecido de veludo vermelho.
- Garotos, este é um pássaro raríssimo. É graças a ele que possuo toda essa riqueza. Porém eu não posso mostrá-lo, senão toda a minha sorte se findaria!
- E por que você decidiu nos falar desse pássaro? - perguntou Dico, extremamente interessado na história.
- Este é um uirapuru macho de penas roxas. Eu não tinha mais de vinte anos quando capturei este aqui, e vocês sabem onde eu o encontrei? Aqui, nesta cidade, na margem esquerda do Rio Sono. E é por isso que estou aqui, eu preciso encontrar a fêmea para acasalar com o meu macho. Mas existe uma condição: quem possui um exemplar do uirapuru de penas roxas não pode prender outro, pois traria má sorte.
- Como você vai fazer então? - perguntou Aristides.
- Quem vai fazer são vocês. Eu tenho a seguinte proposta: caso vocês me tragam a fêmea do uirapuru, dividiremos meio a meio toda a riqueza que a nova sorte me trouxer!
- A gente pode fazer arapuca, tocaiar o bicho! Meu avô é perito em caçadas! - disse Dico, agora empolgado e fascinado pela perspectiva de enriquecer.
- Mas como a gente vai atravessar o rio? - indagou Aristides, colocando as coisas em suas ordens práticas.
- Balsa de buriti! - respondeu Ozimar sucinta e precisamente.
- Agora vão, garotos! Já está tarde e creio que cada um dos três vai levar uma bela surra. Mas lembrem-se: metade da riqueza será de vocês!
A surra era tão previsível como os ventos daquelas tardes de setembro. Ao longo da semana, sempre no recreio e no final da aula, os três amigos discutiam em segredo a estratégia para capturar o pássaro.
- Eu arranjo as talas de buriti com o meu padrinho! E posso adiantando a construção da balsa! - disse Ozimar.
- Eu já falei com meu avô, ele tem uma arapuca de taboca que ele usa para caçar perdiz! - completou Dico.
- Já que é assim, eu posso tratar da comida pra gente levar! - finalizou Aristides, completando toda a estratégia de captura do uirapuru.
Os garotos partiram no sábado de manhã, antes mesmo de amanhecer. Assim não encontrariam ninguém nas ruas da cidade, de modo que não levantariam suspeitas.
O Rio Sono ficava a uns dez quilômetros da cidade. Os três, em suas bicicletas, seguiam felizes pela estrada de terra que os conduzia ao seu destino. Ozimar esforçava-se para segurar a balsa que fizera. Apesar da leveza do buriti, encontrou dificuldades para segurá-la e guiar a bicicleta ao mesmo tempo. Chegou a deixá-la cair algumas vezes, ficando para trás enquanto os outros dois seguiam cada vez mais longe. Enfim, o rio.
Não começara ainda o período de chuvas, de sorte que o nível das águas estava baixo. Assim que Ozimar chegou com a balsa, começaram a discutir sobre a melhor forma de fazer a travessia.
- Melhor de dois. Três fica pesado!
- Não, Dico! Eu fiz a balsa para agüentar nós três. Assim a gente não perde tempo!
Aristides hesitou alguns instantes, mas concordou com Ozimar.
- Vamos os três então...
Lentamente foram molhando os pés e firmando a balsa sobre a superfície da água. Primeiro testaram a sua resistência colocando o saco de mantimentos que Aristides trouxera. Depois, um a um, tomaram assento e remaram para dentro do rio. Apesar do período de estiagem, a correnteza era forte, fazendo a balsa vacilar.
- Segura, gente! - dizia Ozimar, remando com força demasiada.
A balsa já estava no meio do rio, quando um movimento mais forte da correnteza derrubou os mantimentos na água.
- E agora, Ozimar?
- Segura, Dico, a gente está chegando!
Aristides permanecia mudo, o corpo retesado, a face branca e inexpressiva.
- O que foi, Aristides? - perquiriu Dico ao amigo.
- Eu não sei nadar, Dico... - e duas lágrimas escorreram-lhe pela face. Não sabia direito se por pânico ou vergonha.
Um rodamoinho inesperado fez a balsa girar bruscamente. Aristides desequilibrou-se e caiu na água. Debatia desesperadamente, tentando segurar a balsa, que se distanciava no curso da correnteza.
- Aristides, segure minha mão! - Dico gritava desesperadamente tentando salvar o amigo.
- Tente nadar até a margem, Aristides. Você consegue! - Ozimar berrava ao ver que o amigo se distanciava cada vez mais.
- O Aristides, Ozimar, o Aristides... ele sumiu... - os dois se abraçaram e choraram juntos. Finalmente a balsa atingiu a margem oposta.
Dico e Ozimar percorreram toda a margem do rio à procura de Aristides, mas nenhum sinal do amigo. Exaustos, os dois procuraram uma clareira onde pudessem descansar. Dormiram algumas horas, como se assim pudessem acordar desse pesadelo e voltar juntos, os três, para casa.
Já passavam das cinco da tarde quando acordaram. Aristides não estava mais com eles.
- E agora, Ozimar? O que vamos fazer?
- Caçar o uirapuru!
- Você ainda pensa nisso?
- Foi por causa desse bicho que o Aristides
sumiu! Agora eu quero matá-lo e vingar meu amigo!
Embrenharam-se na mata ribeirinha, mas guiados pelo ódio nunca conseguiriam
achar o pássaro encantado. Anoiteceu e estavam perdidos, adentrando cada
vez mais o fundo da mata.
- Por que, meu Deus, por quê!? - Dico queria chorar, quando algo no meio da mata despertou a atenção deles.
Uma luminosidade misteriosa em meio às trevas. Cuidadosamente caminharam em sua direção. Ao se aproximarem, depararam com um pássaro gigantesco, cujas penas irradiavam a luz que se alastrava pela mata. O pássaro notou a presença dos dois, e com um meneio da cabeça parecia chamá-los para mais perto.
Enfim se aproximaram. Insistentemente o pássaro movia a cabeça em direção ao dorso, sinalizando para que subissem em suas costas.
O grande pássaro alçou vôo, levando Dico e Ozimar para terras distantes. Ao amanhecer, perceberam que estavam sobrevoando sua cidade.
- Olha Ozimar. Aquela é a sua casa! O bar do seu Quincas, a mercearia do seu Cipriano, a igreja... olha, o acampamento dos ciganos!
O pássaro subia cada vez mais. Atravessou um espesso acumulado de nuvens, entrando em outra dimensão.
- Que lugar será esse?
- Eu não sei, Ozimar...
Finalmente o pássaro pousou. Aristides e Ozimar desceram. Caminharam um bom tempo até avistar alguém. Ao longe, um menino sentado, com o olhar perdido no horizonte.
- É o Aristides, Ozimar! - gritava Dico enquanto corria em direção ao amigo.
Os dois se aproximaram de Aristides, mas ele não desviou o olhar do horizonte.
- Vamos, Aristides! A gente precisa ir embora!
Por um momento ele se virou para os amigos. O semblante sereno e sério ao mesmo tempo não lembrava o garoto alegre e curioso que sempre fora. A mudança foi constatada pelo tom de voz com o qual se dirigiu aos amigos:
- Nós fomos corrompidos pela ganância, meus caros amigos, nós, três garotos de doze anos, deixamos florescer em nossos corações essa maldita erva, chamada ambição. Todavia, eu não pude chegar ao fim do nosso projeto. Eu não pertenço mais ao mundo de vocês, ficarei aqui até o momento do meu julgamento. Espero que vocês encontrem o arrependimento, tal qual eu encontrei. Mas vocês não sairão impunes. Olhem-se agora!
- Quem é você? Onde está o Dico?
- Como assim? Eu sou o Dico. O que você fez com o Ozimar?
- A ambição, essa antiga e
ardil armadilha, meus caros, envelhece o coração dos homens. Agora
vocês voltarão para a cidade, não mais como crianças,
mas dois velhos, irreconhecíveis para suas famílias e amigos.
Serão tratados como indigentes, cada vez mais distantes da riqueza que
um dia ousaram conseguir!
No dia seguinte, ao se encontrarem na rua, seu Dico e seu Ozimar conversaram
longamente sobre o estranho sonho que tiveram, idênticos em cada detalhe.
Até um suposto amigo de infância, um chamado Aristides, era o mesmo.
Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.