CALOTEIRO
Beto Muniz

 
 

Semana do meu casamento. Estava cheio de compromissos e ainda faltava comprar alguns móveis. Na verdade ainda estava com todos os eletrodomésticos por comprar. Foi neste clima de ansiedade e aperto que recebi uma proposta inusitada. Veio do Gérson, um colega de trabalho:

- Se você quiser, podemos fazer uma troca. Eu compro todos os eletrodomésticos que faltam na sua casa, e mais alguns que você nem pensava comprar, e você me dá sua moto.

- Como assim? Os eletrodomésticos custariam bem mais que minha moto!

- Tudo bem. Eu fico com o prejuízo.

- Bebeu?

- Fica como se fosse o meu presente de casamento. É pegar ou largar...

Peguei.

No dia seguinte fomos às compras. Eu, a futura esposa e o bom samaritano. Geladeira dúplex, fogão seis bocas automático, videocassete, televisão 29polegadas, aparelho de som, lava-roupas, secadora, microondas, lava-louças e até uma TV 14polegadas para deixar no quarto. A conta final excedeu em quase três vezes o valor da moto. Protestei:

- Pô Gérson, ficou caro demais. Não posso aceitar!

- Podemos deixar a TV 14polegadas, a lava-louças, o microondas e a secadora... - a futura esposa, barrigudinha de seis meses tentou ajeitar as coisas.

- Nem pensar! Vocês escolheram e vão levar tudo.

O amigo, a essa altura quase um irmão, não estava disposto a regatear e como diziam meus avós: "em cavalo dado não se olha os dentes"'. Aceitamos. Aquele surto de loucura poderia passar, mas se depois de algum tempo ele viesse reclamar eu pagaria metade das prestações. Sim. Tudo foi financiado em várias prestações, porém, como o salário dele não era maior que o meu cada um dos objetos rendeu um carnê de crediário distinto. Cada eletrodoméstico foi adquirido numa loja diferente.

A festa foi pequena. Gente pobre tem mania de reunir amigos e parentes em torno de um evento e chamar de festa. A alegria foi enorme. E a casa? Completa. Não faltou nenhum aparelho de utilidade doméstica. Os utensílios pequenos ficaram por conta dos parentes. Desde a panela de pressão até o tapetinho na porta de entrada, tudo veio de presente. Só em copos ganhamos dezoito jogos completos! Duas semanas depois do casamento o Gérson bateu na porta de casa. Atendi já fazendo cálculos e contas, conciliando parte das prestações com o salário que eu tinha na época. Mas ele estava sorridente. "Muita calma - pensei - espere que diga a que veio". Relaxei e esperei a ladainha. O visitante ilustre conheceu a casa, ouviu umas músicas no aparelho que ainda tinha muita prestação por vencer, assistiu os melhores lances do Corinthians na TV. Abriu várias vezes a geladeira duplex em busca de cerveja estupidamente gelada, e só então me convidou para conhecer seu carro novo, estacionado na frente da minha garagem. Fiquei surpreso ao ver o modelo zero quilometro.

Eu ainda estava em férias, talvez o Gérson tivesse ganhado uma promoção, ou então ele tinha ganhado uma bolada na loteria, ou estava metido com aqueles elementos da rua de baixo, ou... Eu quis saber de onde tinha vindo tanto dinheiro e ele não se fez de rogado:

- Pedi para ser demitido na semana do seu casamento. Peguei o FGTS, juntei com os direitos trabalhistas e deu uma boa grana. Boa parte eu dei na troca da moto por esse carrão.

- Arrumou outro emprego? - perguntei só para disfarçar minha inveja.

- Que nada. Estou de saco cheio de São Paulo. Volto amanhã para minha terra e por isso passei aqui, para dar um tchau. Não queria ir sem me despedir de você, meu colega de serviço, um puta amigo que me ajudou muito quando cheguei em Sampa.

Comovido com a demonstração de amizade eu quis esboçar um comentário, mas o Gérson não permitiu que o interrompesse e continuou:

- E também quero pedir um favor; se alguém perguntar onde estou, qual é a cidade que meus pais moram ou coisa parecida, diga que não sabe. Segura essa?

- Tudo bem, mas por que esse mistério?

- Algumas pessoas vão me procurar e não quero ser encontrado.

Pronto! Estava envolvido com os tais elementos da rua de baixo.

- Porra Gérson! Como você foi se meter nessa enrascada?

- Do que você está falando?

- Estou falando de você se envolver com traficantes.

- Bebeu? Eu estou limpo. Não me meto com bandido não!

- Então está fugindo do quê?

- Dos cobradores! Casas Bahia, Pernambucanas, Lojas Marabrás, Kolumbus, Extra... Todo mundo levando calote.

- Caralho!!!

Não é incomum que um homem converse com outro homem falando palavrão para mostrar que é homem, mas nem era esse o caso. O palavrão foi a única coisa que consegui dizer quando entendi a situação.

Ele ficou um bom tempo passeando de carro novo e fazendo sucesso com as conterrâneas, lá no nordeste. Depois vendeu o carro e juntou toda grana que tinha para montar um boteco na beira da praia. Dois anos atrás, quando os protestos/SPC-SERASA caducaram, ele me escreveu dizendo que ia deixar o pai cuidando do bar e voltar para São Paulo. Sujeito bom de conversa, boa aparência e ficha limpa na praça, não demorou muito para encontrar um bom emprego com um bom salário. Mora do outro lado da cidade e faz questão de manter a nossa amizade, por isso aceito seus convites para almoçarmos. Conversamos, bebemos, rimos e sobre o calote nem um pio. No último encontro, na saída do restaurante, olhou meu carro como se fosse um comprador e perguntou com sincero interesse:

- Você não está precisando trocar seus móveis?

Entrei no carro e fugi antes que a tentação me fizesse responder que sim.

 
 

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