EU
VEJO UM SOL
Bárbara Helena
"é
verão, baby, viver é fácil "
( summertime )
Blues explodiam em mim, o calor entranhava
na pele e não havia como fugir à espinha de peixe cortando a garganta.
Como nos livros do primário, repeti para a janela: eu vejo um sol, eu
vejo um jardim castigado e empoeirado, eu vejo uma mulher ressecada de viver.
Naquele tempo havia professores para nos ensinar a descrever o mundo.
Dedilhei o piano levemente: cry me a river ... chore-me um rio... o rio avançava
dentro de mim, engolia passado e presente, desbotava meu retrato na prateleira
do trailer. Sou ainda aquele sorriso? Fui algum dia? Notas saem mais rápidas,
faço um fraseado jazzístico, improvisação... não
há mais professores para me dizer que vejo um mundo.
A espinha começa a se dissolver junto com a música.
Billie chega e acompanha na guitarra. O dente de ouro brilha na penumbra. Os
braços estão mais finos. Estará se picando? Não
quero mais me preocupar com ele. Tantas vezes o tirei da cadeia, tantas vezes
contei histórias tristes sobre os cigarette blues que já nem sei
o que é verdade e mentira. Acompanho seu solo e os pensamentos vão
descrevendo a rota. Billie - não importa tudo - meu amor. Billie por
causa da Holliday, Billie assim mesmo, Etevaldo na carteira de identidade.
Ele sorri, música é sua terra. Não consigo tanto. Eu vejo
um sol, eu vejo um jardim , eu vejo uma mulher e não acredito em nada.
Da janela vem a brisa leve que ameniza o suor escorrendo pelas pernas. Largo
o piano de repente , dou um beijo em Billie e saio para o jardim do estacionamento.
Marina está fumando apoiada na
parede do trailer
- Cadê Mimi? perguntei
Ela riu de lado e apontou para o caminhão há uns cem metros de
nós.
- Passou a noite com ele? - pergunta idiota.
Marina nem respondeu. Mimi acreditava que sapatinhos de cristal existiam e príncipes
se escondiam em caminhoneiros. Mulher feliz.
- Que tal a casa? você esteve lá? E o som? - perguntas que atropelavam
minha dor.
Marina deu de ombros. Eu sabia como eram as casas que sobravam para nós
nestas periferias pobres.
A brisa cessara e o calor sufocava.
- Acho que vai chover
Ela olhou a fumaça , bateu o cigarro e respondeu:
- Talvez
Os professores de mundo estavam longe. Billie também saiu, acendeu um
cigarro na guimba de Marina. Suas mãos tremiam. Meu coração
ficou mais encolhido. A droga estava acabando com ele. A droga e o amor.
Seu olhar avaliava o corpo esguio e os olhos azuis. Ela nem reparou. Era muito
para nós, passeava pelos cigarettes sem contágio. Marina era roliúdi
e ninguém tiraria isto dela. Fumava com pose de diva blueseira, gestos
lânguidos.
Eu seguia o amor de Billie, acompanhava cada suspiro, afundando a faca.
- Muito calor...
- Demais...
Nossa improvisação escondia as verdades que jamais diríamos
- eu que amava Billie, que amava Marina, que amava a si mesma. Presos na teia
de um sol fugitivo, de planetas que corriam em direção a um inalcançável
fim. Conversando sobre amenidades para não explodir as verdades que acabariam
com os cigarettes. Acima de tudo, calávamos pelos blues. Eu vejo um sol,
eu vejo uma chuva que vem, eu vejo um caminhão há cem metros daqui.
Não há professores para o sub-texto.
A porta do caminhão se abriu e Mimi saltou, ajeitando a blusa justa.
Olhou para nós meio embaraçada. Ninguém falou. Ela pediu
um cigarro. Nuvens carregadas se formavam no céu e o calor se tornara
quase insuportável.
- Merda de cidade quente!...
- Quente demais... - Billie respondeu, vigiando os seios de Marina que se agitavam
com a respiração ofegante. Mimi percebeu e olhou para mim.
- Vou tomar um banho - quebrei a corrente.
O céu tombou sobre nós, escuro, maligno. Eu vejo a tempestade
se aproximando.
***
Uma boate modesta do interior, local de caminhoneiros, mas estava cheia.
Nós sabíamos que era mais pelo corpo de Mimi e a beleza loura
de Marina, do que pelos blues que arrancávamos da nossa alma esfarrapada.
Não tinha importância.
Marina ia se transformar na cover da Holliday, acompanhando a introdução
da guitarra, quando eu iniciei, com voz rouca:
"Summertime.... child, the living's easy.... "
Billie me olhou espantado, mas continuou, um fraseado lindíssimo, a dor
explodindo nas cordas. Mimi agarrou o sax e também seguiu:
" Fish are jumping out... And the cotton, Lord... Cotton's high, Lord,
so high..."
Cantei como nunca mais iria conseguir, com a alma rasgada, mordendo as palavras,
atropelando as sílabas... cantei com a alma exposta, o sangue escorrendo
de cada nota, cantei meu amor despedaçado.
Quando acabei, estavam todos de pé. Aplaudindo. Eu vejo um sol.
Por toda parte ainda era ontem, mas em mim amanhecia.
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