CONGADO
Ubirajara Varela
Em uma de minhas incursões fotográficas, resolvi retratar o congado de Minas Gerais. O Congado é uma manifestação folclórica, dizem os mais antigos, que nasceu no Brasil, uma adaptação da cultura africana aos ditames nacionais, assim como a capoeira ou o maracatu. Mistura de elementos portugueses, como, por exemplo, a devoção a Nossa Senhora do Rosário (padroeira dos escravos negros) com os tambores (tipicamente africano).
Embarquei neste projeto e cheguei a uma cidadezinha mineira que, como todas, tem uma matriz esplendorosa e várias capelas e, dentre estas, uma voltada aos descendentes de africanos, onde homenageiam e reverenciam os antepassados e suas divindades.
Assim que cheguei, fui recebido pelo capitão da Guarda de Congo São Jorge Guerreiro, que me conduziu até o meu alojamento. Chamava-se Antônio. Já instalado, conversamos um pouco e ele me contou casos da história da cidade, das tradições locais e de como a sua guarda se perpetuou de geração para geração. Ele dizia ter muito orgulho de ser descendente direto do famoso Chico-Rei, um escravo que conseguiu sua própria alforria assim como a de muitos outros escravos.
Logo depois da nossa conversa inicial, Antônio me levou ao local onde estava hasteada a bandeira de São Jorge. Fiz algumas fotos, mais algumas perguntas e fomos até a cozinha, onde as mulheres preparavam a comida que seria servida após o ritual litúrgico, o qual se iniciaria às quatro horas da manhã do dia seguinte. Fiz outras fotos e fui me deitar mais cedo, a fim de descansar da viagem e me preparar para a longa jornada da festa.
Às quatro da manhã, Antônio veio me chamar. Você é muito pontual, eu disse. Ele riu, dizendo que o desjejum me aguardava. Sentamos numa longa mesa feita de jacarandá, onde estavam dispostos vários pratos como broa de fubá, queijo minas e outros quitutes. Estava me servindo quando chegou um negro imponente, um tanto velho, mas muito bem aparentado, com olhos vívidos que denotavam uma alma guerreira e um semblante de sabedoria.
Antônio falou, este é o nosso rei, Seu Zé do Congo.
Ele sorriu cordialmente e apertou a minha mão. Seja bem-vindo, meu filho, é um prazer tê-lo conosco.
O prazer é todo meu, respondi meio desconsertado com o carisma daquela figura tão majestosa.
Conversamos, ele me contou novas histórias e eu aproveitei para fotografar todo o momento.
Terminado o café, fomos nos preparar. Separei e conferi todo o meu equipamento fotográfico, estava realmente ansioso para começarmos. Saí para fumar e esperar a guarda junto da bandeira. Fiz mais algumas fotos. Era um local bem amplo, cercado de árvores frutíferas em terra de chão batido.
Aos poucos o lugar foi se enchendo de gente vestida com roupa de soldado; no peito, a insígnia da guarda. Os tambores tocavam alto. Ouvia-se de longe o seu repicar, acordando os mais preguiçosos e convidando os desavisados para assistir ao espetáculo que se anunciava.
Grupo reunido. Saímos em cortejo pelas ruas da cidade. A cada movimento da guarda, os tambores faziam um toque diferente. Às vezes mais rápido, às vezes mais lento. Subir ladeira. Descer ladeira. Marcha rápida, marcha média, marcha lenta. E os negros iam dançando, saudando e cortejando o grande Rei, seu Zé do Congo, e reverenciando os antepassados que permitiram que estivéssemos ali, naquela hora.
Percorremos metade da cidade, o sol já ia alto no horizonte, quando nos deparamos, no alto de ladeira vizinha, com outra guarda, conhecida como Guarda de Moçambique de Nossa Senhora do Rosário.
Antônio veio até mim e comentou que, quando as guardas se encontram, muitas coisas estranhas costumavam acontecer. E era pra eu me precaver, ficando atrás dos tocadores, que já entoavam uma nova marcha.
Começamos a descida da ladeira. O encontro iminente das duas guardas se daria num largo, a uns vinte minutos de caminhada. As cantigas eram entoadas com fervor e todos pareciam envolvidos em uma espécie de transe. Eu fotografava tudo, não perdia um átimo sequer.
Quando os dois grupos se encontraram, começaram uma dança belíssima, desafiando-se mutuamente, em passos, canções e toques, cada qual realizado com grande desenvoltura.
Antônio pediu que eu me afastasse.
Teimoso, dei a volta no grupo e fui buscar outros ângulos, perto da guarda de moçambiqueiros. Uma chuva de marimbondos negros, vinda não se sabe de onde, abateu-se sobre nós. O capitão rival ria, como se a chuva de insetos fosse obra dele.
Fiz mais fotos, elas ficariam belíssimas. O capitão me viu fotografando e iniciou uma cantiga que não entendi muito bem, mas o refrão dizia algo como: Queima Nossa Senhora!, Queima Nossa Senhora! Registrei na minha Laica.
Depois de muitas evoluções, ambas as guardas se afastaram ao mesmo tempo, seguindo em frente, como se nada tivesse acontecido. Faz parte da tradição deles sempre seguir em frente, nunca voltando por caminho já percorrido. Agora íamos para o ponto de saída, depois de percorrer toda a cidade, depois de porfiar com o grupo rival, numa marcha um tanto mais branda ditada pelas caixas. O sol morria no horizonte e meu trabalho estava concluído.
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Já em casa, cheio de informações e material coletado, fui revelar os filmes expostos. Tenho o costume de cuidar de todo o processo, pois não confio nesses novos profissionais, que usam tecnologias que sempre nos deixam na mão na hora H. Sou um fotógrafo à moda antiga, diriam alguns, mas é pura precaução.
Passado o tempo necessário para a revelação dos negativos, percebi que nenhuma foto da disputa das guardas havia saído. Todas as tiras se queimaram. Fiquei perplexo. Isso nunca havia me acontecido antes. Perplexo, tentei pensar, em vão, na possível causa da minha perda. Nesta hora veio à mente a figura do capitão da Guarda de Moçambique de Nossa Senhora do Rosário (a rival) rindo e cantando Queima Nossa Senhora!, Queima Nossa Senhora!
Realmente Antônio havia me alertado
que nos encontros de rivais aconteciam muitas coisas estranhas. O Congado
é algo mágico. Sem querer mistificar.
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