SEXTA FEIRA DA PAIXÃO
Luís Valise

 
 

Comecinho de noite, o barzinho lotado, a mesa no canto vazia, e Pereira, o garçom, explicando pela enésima vez:

- Tá reservada.

E estava mesmo. Ele nunca falhava, e como sempre foi logo chegando, pedindo licença, abrindo caminho, até sentar-se. Olhou o relógio, chamou o Pereira:

- Me traz um duplo, depressinha! E club soda.

Ela não devia demorar, então ele queria dar logo uma calibrada pra não ter que agüentar sermão. Soltou o nó da gravata, ajeitou o maço de cigarros e o isqueiro ao lado do cinzeiro, e logo o Pereira punha o balde de gelo, o copo alto, o litro de uísque com seu nome no rótulo e a garrafa de club soda. Ele olhou o garçom:

- Porra, Pereira, cê tá querendo me ver morto? Se ela chega e me vê de armas e bagagens eu tô fudido! Bota aí duas doses e leva o arsenal!

Paciente que só ele, afinal o freguês era dos bons, o garçom atendeu a ordem e se retirou. Na mesa, o cliente consultou outra vez o relógio e deu dois goles rápidos. Acendeu um cigarro, recostou-se na cadeira e relaxou. A bebida já terminava quando ele a viu entrar, linda como sempre, sandálias de salto, vestido deixando à mostra os joelhos redondinhos com covinhas nas laterais. Chegou, debruçou-se e deu-lhe um beijinho no rosto:

- Demorei?

- Põe a mão no meu coração. Vê? É a saudade que me deixa assim.

- Será que não é o uísque?

- Pô, não começa! Eu só tomei um. É a falta que você me faz, mesmo. Vai tomar o quê?

- Chopp.

- Só? Pede alguma coisa mais forte...

- Não, chopp tá legal. Ainda mais com esse calor...

- Tira esse casaquinho, deixa eu ver teus braços...

- Não começa. Depois cê fica querendo mais, e aí já viu, né?...

- Tira. Tira. Assim. Eu adoro teus braços. O perfume dos teus braços. Ai, que saudade!

- Pára, não começa não, aqui não é lugar pra isso...

- Então vamos pra outro lugar, eu conheço um lugarzinho.

- Não vamos pra lugar nenhum! Eu sou casada, você é casado, toma juízo!

- E daí? Ninguém precisa saber! Vamos, vidinha, vem comigo...

- Ele não merece. Ela também não merece. Toma outro uísque, e sossega.

- Você não me ama mais?

- Toma outro uísque, toma. Pereira, repete a dose dele.

- Você nunca mais disse que me ama. Então diz que não me ama mais, e eu sumo da tua vida, prometo. Não quero ficar aqui feito cachorro sem dono, se é pra você ficar pensando no outro!

- No outro não, ele é meu marido!

- Mas é de mim que você gosta!

- Não sei, querido, tudo é tão confuso...

- Pereira!, vê mais um!

- Não exagera, benzinho, senão você fica alto, e isso estraga nossa conversa.

- Conversa, que conversa, chega de conversa! Vem ficar comigo lá no

- Pronto! Eu não falei? Já tá ficando de fogo!

- Não tô não, o único fogo aqui é o que eu tenho por você! Deixa eu pegar nas tuas coxas, deixa...

- Cê tá maluco? Tira a mão daí, senão eu vou embora!

- Quê que tem? Agora mesmo você me chamou de querido, de benzinho...

- Às vezes você parece criança. Já tem gente olhando...

- Inveja. Não é todo mundo que tem uma mulher como você. Eu tenho.

- Menos... menos... Vai tomar outro uísque??

- Vou. Se você não for comigo, eu tomo. Se for, eu não tomo. Vai?

- Não.

- Pereira, põe mais um! Então me dá um beijo na boca.

- Chega pra lá, senta direito na cadeira, tá todo mundo olhando. Olha o mico!

- Foda-se o mico, foda-se o mundo e foda-se o Pereira! Me dá um beijo!

- Chega! Eu vou embora! Toda semana é esse vexame! Solta meu braço!

- Desculpa, benzinho, desculpa, eu falo baixo, eu me ajoelho, eu peço desculpa pro mico, pro mundo, pro Pereira, mas não vá embora! É só aqui que eu te vejo, uma vez por semana, por favor, não vá embora! Toma mais um chopp.

- Então vê se toma jeito. Controle-se. Você sabe que eu gosto de te beijar, e que eu gostaria de ficar com você, mas não é possível. Então vamos fazer o que for possível. E o possível, ao menos por enquanto, é nos encontrarmos uma vez por semana, aqui, e conversarmos, olho no olho. Eu adoro olhar nos teus olhos, ainda mais quando você fica com essa cara de cachorro abandonado. Ai, pára de olhar pra mim, assim! Você me faz sentir culpada. E eu não tenho culpa de nada. Talvez numa outra vida... Mas você não acredita nessas coisas, né? Numa outra vida bem que poderíamos ter sido amantes... Você não acha lindo, isso? Ou então o que está acontecendo agora é só uma preparação para uma vida futura... Vai ver a gente se encontra na próxima encarnação...

- Nós estamos vivos agora. Berêra!, vê aí uma saidêra!

- Já vamos embora? Eu ainda posso ficar mais um pouco...

- Não, vidinha, quando você começa com essas histórias de outras vidas, outras encarnações, outros planetas, é foda! Nós estamos vivos aqui e agora! E eu te amo tanto que já estou vendo duas você. Uma mais bonita que a outra. E nenhuma das duas quer ficar comigo. Então me resta o quê? Tomar mais um uísque, curtir mais um pouquinho esta paixão, e pegar a reta!

- Será que você consegue andar sem pisar na bola? Se precisar, segure-se em mim.

- Segurar em você por quê? Eu queria era te segurar na cama, no colo, no chão...

- Tá. Então vamos saindo. Primeiro pague a conta. Pereira!

- Eu tô bem.

- Eu sei, o mundo é que tá meio inclinado. Vem. Põe o braço no meu ombro. Assim.

Pereira limpou a mesa, um casal se sentou, o homem perguntou se aquilo era comum. Pereira explicou:

- É. Toda sexta-feira é isso. O cara chega, senta, pede uísque, fica bebendo e fumando calado, gesticulando, ficando cada vez mais de fogo, até ir embora lá pela meia-noite. Mas ele é boa gente.

A noite estava quente; as ruas estavam cheias de gente; os bares, lotados. Entrou no carro, deu partida, foi dirigindo devagar. As ruas estavam todas meio inclinadas.

 
 

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