CLEPSIDRA
Leila Silva

Pensar que me chamo Stella por causa de um filme. De um filme e de um livro, disse a minha mãe. Steeellaaaa! Gritava Marlon Brandon no filme e mamãe gostava de imitar quando eu era criança só para me ver rir. Agora mamãe está morta, mas basta concentrar-me para ouvir a sua voz a gritar o meu nome. Em muitas outras coisas a memória me trai, já não sei se foi como imagino ou se aquilo já é uma memória da memória, uma projeção defeituosa do que penso ter sido. Disso, porém, eu me lembro, ela dizendo que Marlon Brando era o homem mais bonito que já tinha visto na tela. Na tela e na vida pois que, para ela, as duas coisas quase se confundiam. Nunca amou a realidade. Eram os romances ou o cinema, o que quer que isso lhe custasse em atraso de aluguel, de energia. Uma Ema Bovary moderna, menos tola e sem o bondoso e entediante Charles. “Dançávamos na chuva, mesmo quando levávamos uma vida de cachorro, não é querida?” Dizia mamãe com um sorriso já mais cansado, tentando disfarçar o medo que,
certamente, sentia da ‘Indesejada das gentes’.

“Marlon Brandon é um deus estranho e nervoso, um deus malgré lui.” Disse, um dia, séria e com voz professoral. Mamãe era bonita e etérea e partiu cedo deixando-me só com a realidade que ela tanto desprezava. A realidade primeira foi a sua triste ausência, um mundo despovoado de riso, de sonho, de dança.


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