VIDA PASSANDO
EM BRANCO
José Luís Nóbrega
Acordou com a mão direita, apagou
a luz, fechou a janela, colocou o pijama, penteou os dentes, barbeou os cabelos,
escovou as orelhas, desligou o chuveiro, banhou a alma, tirou os chinelos, afrouxou
a gravata, fez dormir os filhos, tomou uma dose de uísque, despenteou
a roupa, desligou o carro, com ele caminhou pela rua.
Pela manhã o primeiro boa noite do dia, esvaziou o tanque
no posto, pagou menos pela gasolina, tinha a carteira vazia cheia de notas de
cem, entrou num supermercado repleto de gente sem ninguém no caixa, avistou
pelo vidro espelhado o padeiro sovando alface, sentiu o cheiro de vida vindo
do açougue, o cheiro de amor da peixaria, ficou na fila pra comprar chuchu,
reclamou da falta de Coca-Cola.
Adentrou o hospital vestido de preto, foi recebido com entusiasmo pelos defuntos,
avistou corredores vazios de onde ecoavam poemas líricos, na enfermaria
masculina mulheres tricotavam verdades sobre os homens, na feminina homens esperavam
dar à luz sem um pingo de medo, na pediatria crianças decidiam
quem viveria e quem morreria na fila de espera.
Viu a chuva chover no molhado, a enxurrada descer pra cima, as Bolsas despencarem
pro alto, a bala achada se perder na multidão, um homem de oitenta morrer
de amor, uma bela jovem de vinte morrer na solidão.
Bebeu toda a areia do mar, comeu toda a água gelada do Sol, deu um anel
de Saturno à Lua, deixando Plutão enciumado.
Festejou sobre o leite derramado, cuspiu no prato que vendeu, roubou outro ladrão
e pegou trinta anos de prisão, foi absolvido pelo General, condenado
pela anistia, fuzilado no Sambódromo, catequizado pelos índios,
perdoado por Fidel.
Com apenas um pau deixou de fazer duas canoas, assoviou de tristeza, amou a
bela que feia lhe parecia, fingiu-se de morto para ser carregado pelo coveiro,
deu um cochilo enquanto morria dizendo mentiras.
Renasceu de susto, viveu duas vezes, amou a mulher certa, compreendeu o amor
de mãe, nunca disse com quem andava e ninguém soube quem era,
fez injustiça com mãos alheias, acordou pobre e dormiu mais pobre
ainda, não quis nascer de preocupação, deixou a morte passar
em preto pelo branco arco-íris da vida...
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