O AMOR É UM PÁSSARO REBELDE
Bárbara Helena

''I know it's wrong, it must be wrong
But right or wrong I can't get along
Without yoy"

- No começo até que foi gostoso...
Pegou a latinha de cerveja, deu um gole e se ajeitou na cadeira de tiras
Acendi um cigarro e fiquei olhando a noite despencar. Estava quente como o diabo e a última coisa que eu queria era ouvir as confidências de Mimi. Mas não tinha como escapar.
Ela continuou, a voz meio embargada:
- O Dorival...eu gostava dele, não gostava? Você é testemunha do quanto eu amava aquele cara... - seguiu meu olhar - ... sei que o Billie não quer que a gente beba antes do espetáculo, mas é só umazinha pra afastar o maldito calor...
Deu outra bicada na lata:
- Um cara bom pra mais de metro... bom demais, se você quer saber, bom de enjoar...- olhou as montanhas se afundando na escuridão - a gente tinha um sitio bonito lá no Largo da Idéia - tanque pros patos, galinhas poedeiras, um cercado com um bode e três cabras, até uma vaquinha leiteira, a Dinorá... - riu entre os dentes brancos - minha rival. Ela e a cadelinha vira-lata, Princesa.... no início até que gostava daquela vidinha tranqüila, mas Dorival passava muito tempo fora...
As primeiras estrelas surgiam no céu. Eu estava sufocada, queria fugir. Um grupo de mariposas rodeava a lâmpada acesa diante da porta do trailer.
- E ainda tinha os forrós... Eu menti... disse que adorava, que amava música de raiz, sertanejo, que estava enjoada dos blues...
Dentro do trailer, Billie começou a tocar "I'm a fool to want you" e meu estômago se aqueceu. Agora tinha uma história. Sorri carinhosamente para Mimi
- Eu entendo, querida...
- Pois é, naquela época acho que era verdade, não foi totalmente mentira... tudo que ele fazia parecia tão lindo!... até o violão desajeitado e as toadas que cantava com a voz grave de roceiro. O amor é cego...
- E surdo... ri baixinho para não abafar as notas que escorriam pela noite quente.

I'm a fool to love you...I'm a fool to want you...To want a love that can't be true
A love that's there for others tôo...

Ouvia a Holliday cantando no meu ouvido - sou louca de querer você...
E a voz entrecortada de Mimi continuando:

- Mas o cansaço daquela vida foi se instalando em mim devagar. Tudo começou a me irritar. O jeito como ele me olhava, as mãos calejadas, o pigarro, o barulho dos dentes triturando a comida. Odiava cada palavra, os CDs de forró, o violão e até o corpo dele, peludo e grande em cima de mim... você sabe que eu adoro sexo... pois tomei enjôo...
Ela parou. Concordei com a cabeça. Sentia uma opressão no peito, o calor me inundando, suor escorrendo pelas costas nuas. As mariposas, cada vez mais frenéticas, faziam dançar as sombras no chão.
- Ele nem percebia, o idiota... se espojava em mim feito um porco, eu dando graças a Deus quando acabava. Minha vida era a infelicidade tranqüila do costume, sabe como é?...
Eu sabia.
- Até que num daqueles malditos forrós, vi um anúncio dos cigarette blues. Foi o fim do nosso mundo. Ali, naquele momento, ouvindo a música alta, no meio dos caminhoneiros e das mulheres e homens se agarrando ao som da viola, eu descobri que não agüentava mais. Me deu um ódio selvagem contra ele, contra todos....
Engasgou com as palavras e pigarreou. Eu estava paralisada, só ouvindo.

'' I'm a fool to hold you
Such a fool to hold you
To seek a kiss not mine alone
To share a kiss that devil has known"

"Sou uma doida de segurar você" gemia a guitarra de Billie e a letra no meu ouvido

Mimi continuava, nada a faria mais parar, atropelando as frases:

- Deixei o marido plantado na mesa e me dirigi para o mais alto e bonito dos caminhoneiros, afastei a piranha que estava com ele e começamos a dançar feito cavalo e égua, uma dança obscena, selvagem, pela primeira vez em muito tempo, eu sentia tesão de novo, um tesão insuportável, cheio de ódio, molhado, lascivo, corrosivo. Colados como dois animais, éramos apenas ritmo da natureza. E eu gozei, acredita? gozei como uma cadela, ali, na frente dele e do povo todo que parou para olhar.... O silencio era mortal, quando empurrei o cara e voltei pra minha mesa. Dorival estava parado, petrificado, enraizado na cadeira, me olhando, como se nada mais existisse no mundo. E aquele olhar me enfureceu mais ainda. Queria que me batesse, jogasse no chão, me espezinhasse...mas ele apenas se levantou, pagou a conta, me pegou pelo braço delicadamente, e saiu.

As mariposas estavam me fazendo mal. Levantei bruscamente e apaguei a luz. A música de Billie agora parecia obscena e triste como a história de Mimi.

"Time and time again I said I'd leave you
Time and time again I went away"

Eu queria que acabasse logo, queria esmagar suas palavras dentro da boca pintada e grossa. Mas ela continuou:
- Chegamos em casa, eu estava fora de mim de raiva, cara mais frouxo!... Então falei, disse tudo que estava engasgado durante aqueles anos todos, confessei que amava os blues e odiava os seus pagodes, os seus forrós, que odiava aquela vida, o cheiro da terra e cada um dos CDs enfileirados na estante. E acabei de enterrar mais fundo o punhal do desprezo - disse que detestava tanto aquela vida quanto detestava seu violão, a música horrorosa que ele cantava, sua voz desafinada... Então consegui, finalmente, matar o amor que me desesperava, boiando nos olhos dele. Me olhou dolorido.. nunca, nunca, vou esquecer aquele olhar... virou as costas e saiu. Logo depois ouvi o caminhão partindo. Fui para um hotel e no dia seguinte os Cigarettes chegaram a Cabuçu. O resto você sabe.

Ela se calou finalmente, mas o veneno estava agindo dentro de mim. O amor, este filho da puta!
Levantei devagar, meu corpo eram toneladas por causa do peso do coração.

O blues se espalhava pela noite quieta e Mimi chorava baixinho, fazendo um contraponto curioso e esquisito.

"I know it's wrong, it must be wrong
But right or wrong I can't get along
Without yoy"

Eu sei que é errado, deve ser errado, mas errado ou certo, não consigo ficar longe de você
Uma infinidade de estrelas me cercava enquanto, sozinha, eu compreendia que estava morta.
Foi quando aconteceu uma coisa inesperada, uma coisa mágica. Do trailer veio uma música que abafou a guitarra de Billie:

"L'amour est un oiseau rebelle que nul ne peut apprivoiser, et c'est bien en vain qu'on l'appelle, s'il lui convient de refuser" cantava a voz límpida da soprano, na Habanera.

Marina colocara a ópera de Bizet.

A guitarra se calou e Billie apareceu, sorridente, na porta do trailer, o dente de ouro brilhando. Ficou ouvindo a ária com delícia, olhos de menino. Mimi parou de chorar, pareceu entender algo que nenhum de nós sabia bem o que era.

"O amor é um pássaro rebelde"... meu coração adejou.. "que ninguém pode aprisionar"... abriu as asas... "é em vão que o chamamos"... voou sobre a silhueta escurecida das montanhas... "quando resolve recusar"...
Percorreu as colinas distantes, rodopiou e caiu em parafuso sobre os cabelos rebeldes do meu Etevaldo, do meu, eternamente, Billie.
Não há cura para o amor.

 

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