O OUTRO CASO DO VESTIDO
Ro Druhens

 

Como se fosse um sacro ofício, ela varria o quintal.

Como se fosse um sacrifício, ele se arrastava até a porta de trás para vê-la.

Deixava nas almofadas do sofá o livro de poesias onde armazenava sonhos acontecidos. Arrastava os chinelos e caminhava trôpego até o sonho que, imaginava, nunca mais aconteceria.

Às vezes o vento, cúmplice de devaneios, lhe mostrava as pernas dela. Ele pouco se importava e maldizia o vento que o distraía de outros desejos. Ele a queria no vestido que o tempo tornara sépia. Ele a queria engalanada de flor-de-laranjeira. Ele a queria pura, de novo, como há 50 anos.

Foi o temporal de verão, inesperado no fim daquela tarde, que o fez correr até ela.

E o abraço.

Água quente de chaleira. Cheiro forte de café.

E o sorriso.

Vestido claro, colado ao corpo. Mãos trêmulas pelo corpo. Corpo de primeira vez em braços derradeiros. Abraços derramados pelo corpo trêmulo.

Ele pediu.

Ela aceitou.

Como fora um dia, mas, às avessas.

A vestiu de noiva como despira a noiva, há 50 anos.

A renda do véu tecia a teia que aprisionava o passado sépia e tornava claro o anoitecer.

Dormiram abraçados.

Pela manhã do seguinte, bem cedinho, ela foi varrer o quintal como se fosse um sacrifício e ele nunca mais acordou.


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