"DEPOIS DO AMOR"
Raymundo Silveira

 

Aquele corpo estendido ao seu lado lhe dava náuseas. Era intolerável a idéia de que aquilo lhe tivesse despertado apetite, poucos minutos antes. O sono, o relaxamento, a aparente sensação de saciedade daquilo, lhe provocavam mais do que asco. Era como se alguém muito faminto houvesse ingerido um pedaço de carne podre e o estômago se recusasse a digerir. Levantou-se pé ante pé e foi vomitar no banheiro. E um ódio imenso foi se apossando dele. Ódio de tudo: daquele corpo ressonante, dos instintos, dos seus órgãos genitais... Até de si mesmo.

Maldito sexo. Como era possível que uma nojeira daquela, tivesse lhe causado desejo? Lembrava-se muito bem quando sentiu, pela primeira vez, uma repugnância mil vezes pior. Tinha dezesseis anos. O quarto estava escuro como agora estava a sua alma. E ele dormia. Deitara-se na cama do tio, irmão do seu pai, porque a grade de suporte da sua havia se partido. Tinham quase a mesma idade. Ele, às vezes, pernoitava fora e não costumava avisar. Despertou subitamente pelas sacudidelas que um vulto de mulher lhe aplicava enquanto pronunciava o nome do tio. E sussurrava: “Acorda. Não agüento mais. Estou para estourar de tesão. Me ama pelo amor de Deus...” Logo em seguida, um grito. O vulto disparou em retirada. Ele correu atrás e acendeu a luz da sala de jantar. Atracou-se com ela. Era a sua mãe.

Desde aquela noite a idéia de sexo passou a estar associada a uma imundície hedionda. Como aquela que viu no corpo da própria mãe noutra ocasião. Quando a exumaram seis dias depois que o pai a havia assassinado e ele teve de servir de testemunha. O mais estranho foi que o desejo ficara intacto. Ele sentia a mesma vontade de mulheres, como qualquer outro homem e as possuía com igual paixão. A sensação de repulsa só aparecia imediatamente depois de ejacular.

Era um masturbador crônico assumido. Quinze dias antes conheceu uma linda mulher através de câmeras da Internet. Ela também se sentiu atraída. Marcaram um encontro para o próximo sábado. Apesar da insistência, ela se recusou a ir conhecer o apartamento dele. “Noutra oportunidade”, disse. Fazia mais de quatro anos que não mantinha relações sexuais. Não insistiu mais porque sabia como se satisfazer sozinho.

Naquela noite ela aceitou. E percebeu a inexperiência dele. Surpreendeu-se um pouco e logo depois decidiu tomar as iniciativas. Pediu que lhe servisse um drinque e bebesse com ela. Aquilo o relaxou. A moça era uma especialista. Assumiu o controle de tudo. Lambeu cada centímetro quadrado de epiderme. Ao se aproximar da região pubiana permaneceu no mesmo lugar durante quinze minutos. A ereção era enorme. E emanavam gotas de muco que ela agora enxugava com os lábios e deglutia. Provou a glande como se estivesse acariciando com os lábios uma uva dulcíssima antes de mordiscá-la.

Então passou a engolir lentamente. Quem disse que a boca não é um órgão genital aveludado? A garganta profunda foi penetrada até o fundo. A seguir ela cavalgou-lhe a face com suavidade, cobrindo-a completamente com o púbis. Quem disse que a vagina não é um favo de colméia? Um alvéolo onde abelhas invisíveis depositam o seu mais doce mel? As sucções eram recíprocas e simultâneas. Os movimentos muito mais lindos do que o bailado das Primaveras de Botticelli. Os gemidos mil vezes mais prazerosos aos ouvidos do que a mais linda das sinfonias jamais compostas. E tudo aquilo se intensificou até um paroxismo infinito. A um limiar de tolerância ao prazer que ser humano algum é capaz de ultrapassar sob pena de desfalecer e despertar no Paraíso.

Só que ele despertou no Inferno. Pensou, enquanto enxaguava a boca ainda impregnada pelos resíduos do vômito. Olhou o espelho e viu a imagem de um louco. Os olhos injetados de sangue. Os cabelos em desalinho. O lábio inferior trêmulo como se estivesse com muito medo. Não estava. Tremia de ódio mesmo. Saiu do quarto e foi a um armário de bebidas. Deglutiu, no próprio gargalo, meia garrafa de aguardente. Seguiu para a cozinha e escolheu a faca mais longa e afiada.

No dia seguinte, na Delegacia, um escrivão tomava o depoimento. “Bem, o laudo do legista diz claramente: “Apesar da dificuldade de contar os ferimentos, em virtude de muitos deles terem sido desferidos quase uns sobre os outros, foram cento e vinte e duas perfurações. O acusado confirma?” “Não! Contei cada uma das facadas à medida que ia dando. Tenho certeza absoluta de que foram cento e vinte e seis...”

 

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