COMO
NOSSOS PAIS
Luciana Franzolin
Sem licença poética, empresto
o título, e conto que hoje cedo, me peguei como minha mãe.
Quando ela via bagunça nos nossos quartos dizia que a gente não
gostava dela. Eu tentava explicar que amar ela não tinha nada a ver com
deixar coisas desarrumadas, mas ela não aceitava, porque era ela quem
sempre arrumava.
Entrar num quarto limpo, com os lençóis cheirando a amaciante,
as camisas dobradas na gaveta e o pó substituído por brilha-móveis
cheiroso é uma das melhores sensações na vida de um ser
humano. Quando se tem isso de graça, sem nenhum esforço, por muitos
dias seguidos, te faz não dar atenção, e quase achar que
tudo estava automaticamente limpo, e pensar que as roupas jogadas na poltrona
e os sapatos esparramados no chão de vez em quando não vão
matar ninguém. Ai você deixa uma vez, deixa de novo no outro dia
e no outro, e quando vai ver tem uma montanha de papéis misturados com
calcinhas e meias com chiclete, e casacos e travesseiros e lençóis
com catchup e pó, muito pó sobre tudo.
Você tem que tirar mil coisas da cama para conseguir deitar.
Isso duplica com as cuecas e tudo mais do namorado, que só promete, mas
nunca arruma nada, e quando arruma é daquele jeito. Sem jogar tudo que
está dentro da gaveta no chão, por exemplo, separar as sedas boas
de pedaço de papel que não presta, juntar as moedas todas, fechar
o tubo de KY, colocar a tesourinha no estojo de manicure, voltar as tampas nos
vidros de perfume, jogar as cartelas vazias de pastilhas para o estômago,
colocar todas as canetas no copinho, organizar os inúmeros papeizinhos
com telefones, jornais e revistas no suporte, encher um saco preto com lixo
que inclui caixinhas de isopor de sanduíches que eu não como.
Colocar o molho barbecue na geladeira, o prato com casca de pão de forma
na pia, folhetinhos de delivery, enfim, uma multidão de coisas que se
aglomeram no quarto de um casal de estudantes morando em Londres. E como tem
gente morando na sala, ainda estão o dvd, videogame e tabuleiro de xadrez,
no quarto que tem carpete e da um trabalhão limpar.
Hoje acordei e chorei, pensei que ele não gostava de mim, ou que acostumou
com a sensação boa de quarto cheiroso que eu sempre limpo, e não
se importa com as roupas que acabou de jogar na poltrona e os sapatos que me
fazem tropeçar no meio do quarto. Pensei que ele não gostava de
mim e me vi igualzinha a minha mãe.
Fiquei um pouco a reclamar da vida, mas vi que sou tonta porque amo esta criatura,
que quando faço as coisas pra ele faço com tanto gosto, com tanta
paixão, só pra saber que ele vai ter aquela sensação
de bem estar de tudo limpo, que quando chegar do trabalho vai descansar na cama
cheirosa, e comer o almoço que preparei.
Não gosto que ele fique comendo sanduíches, então escolho
uns vegetais bonitos, cogumelos frescos, algum peixe e frutas para a vitamina
da manhã. Cozinho como se ali pudesse, em cada tempero, transferir saúde,
sabor, alimento pra alma. Os vapores todos se misturam e perfumam a casa com
cheiro de fome. Ele repete mesmo de barriga cheia e me liga pra dizer que estava
muito bom.
Fico pensando que é assim que a minha mãe também faz as
coisas todos os dias, e hoje entendi porque ela fica cansada, e reclama, e pensa
que quem faz bagunça não gosta dela. Às vezes da vontade
de largar tudo só para ver até onde chega, mas já tentei,
e não consigo. Se eu tivesse marido e filhos faria a mesma coisa, seria
igualzinha a minha mãe, e talvez quando eles estiverem longe de casa,
descubram nestas pequenas coisas, o significado de amar.
E o meu pai, quando ler isso, vai ficar bravo em saber que estou aqui do outro
lado do mundo, morando com um namorado que ele nem conhece. Mas pai, qualquer
hora eu te escrevo de novo, sobre o amor também, e sobre como me pego
igualzinha a você nos meus pensamentos. Vou te falar em como é
bom, aqui do outro lado, ter alguém me esperando em casa, ou me buscando
de madrugada no trabalho. Alguém que me passe uma segurança parecida
com a sua. Fique tranqüilo que a todo momento enxergo o valor sem tamanho
da base que recebi e reconheço a pessoa que sou refletida em vocês.
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