DEPOIS DO AMOR
Kátia Rodrigues



Desceu a escada em silêncio, passando as mãos no cabelo, jogando a franja no rosto. Não queria que lhe vissem as lágrimas, mesmo por trás dos óculos cuidava em esconder-se.Alheia aos que passavam, seguiu sem destino com uma urgência de fuga. Abriu a bolsa e tateou o cigarro. Procurou o isqueiro e percebeu que ficara esquecido.

No bar, em frente ao ponto de táxi, entrou e pediu um isqueiro. Acalmou-se com a fumaça e só então se deu conta do crime; estava viva. Seguiu pela avenida e misturou-se a multidão que reverenciava as compras aos sábados. Seguia em linha reta, tentando parecer natural. Virou na esquina e esperou que o sinal abrisse; atravessou ligeiro em meio a uma profusão de pais, filhos e casais.

Passos rápidos dobrou a esquerda, enquanto os outros tomavam outro rumo. Aproximou-se da mureta e pela primeira vez olhou o céu azul, que já não o abrigava. Abriu a bolsa, segurou o lenço e o desdobrou, jogando a arma no mar. Descuidadamente passou as pontas do lenço sobre a cabeça, colocando-o no pescoço, enquanto olhava a água. Refez o caminho, virando a esquerda e na calçada parou um táxi; abrindo a porta disse simplesmente: “Aeroporto Internacional”.

Pegou o estojo na bolsa e com cuidado passou o batom. Guardou-o em seguida, checando o passaporte e a passagem, com a ponta dos dedos. Por trás dos óculos, dos vidros fechados, presa no ar condicionado do carro, revia seu último dia, desde que o telefone tocará.

A decisão da viagem tinha sido combinada de acordo, pois ambos sabiam que essa parada os obrigaria, estando sozinhos, a conversar sobre os últimos meses, que claramente deixara-os afastados. Ela atribuía ao excesso de trabalho de ambos, os silêncios, a falta de desejo, o cansaço. Ele ficara calado todas às vezes que com estranheza tocara no assunto. Era o seu jeito, pensara.

Na véspera chegara em casa mais cedo, levando flores. Tomara um banho, e resolvera fazer um jantar especial para os dois. Arrumou as flores no vaso, colocando-o no aparador, sob o espelho, diante da porta de entrada.
Entrou na cozinha, e logo depois ele chegou. Perguntou-lhe o porquê das flores, e ouviu que eram para ele. De costas na pia, notou que o beijo de chegada tinha sido abolido; pegou as cebolas, o alho, o gengibre e o sal. Abriu o armário, pegou o ralador e o azeite. Sem se voltar perguntou como tinha sido no escritório. Ouviu que estava sob controle e perguntou se teriam visita. Respondeu-lhe que não, o jantar seria para os dois. Parado na porta ele disse que ia até a garagem, que esquecera o envelope com as passagens e passaportes no carro.

Começou a cortar as cebolas, em lâminas finas, colocando-as num pote de barro. Fez o mesmo com os dentes de alho, e ia pegar uma tigela para ralar o gengibre quando ouviu o celular tocando. Colocou a faca sobre a tábua, abriu a torneira, lavou as mãos, e pegando a toalha foi até a sala. O celular dele estava sobre o aparador, ao lado das flores. Viu o aviso de que tinha uma mensagem.

Sem pensar no que fazia, apanhou o telefone. Conhecia o número que discara, e instintivamente quis ouvir o recado. Discou a senha ‘secreta’ que ele utilizava em quase tudo. Sentindo o chão fugir, ouviu a mensagem. Ela dizia que sentiria saudades e que não via a hora que ele voltasse para ficarem juntos definitivamente. Que sabia o quanto seria difícil, mas que enfrentariam tudo e não tinham culpa por se amarem. Deixou-lhe um beijo e disse que o amava. Com as mãos trêmulas apagou o recado. Checou as ligações recebidas: nenhuma chamada recebida ou efetuada. Ele tomara cuidado. Colocou o aparelho no mesmo lugar e sentou-se na sala, olhando o vazio. Ele e sua irmã!

Ele subiu, deixando o envelope em cima do aparador, largando o chaveiro e anunciando que tomaria um banho. Olhou-o nos olhos, vendo-se traída, despedaçada. Avisou que o jantar demoraria, que não tivesse pressa. Ofereceu-lhe um whisky, ou uma cerveja? Ele disse que não, mais tarde talvez. E foi para o quarto. Ficou ali sentada, sem saber o que fazer desse amor, da comida, da irmã, da vida. Sentiu uma dor dilacerante.

Ligou o som da sala, e foi até a cozinha. Colocou as duas mãos sobre a bancada e chorou as primeiras lágrimas. Não teriam volta, nem jeito, e a viagem pouco adiantaria. Entendia agora os últimos meses. Lembrou-se do almoço com a irmã, num dia desses, em que ouvira que talvez fosse por conta de acúmulo de trabalhos, que o deixasse quieto, que não percebera mudanças. Justamente os dois, que amava tanto.

Foi até o som da sala, mudou a estação e colocou numa música rápida, acelerada; em seguida entrou no quarto. Olhou as roupas dele jogadas sobre a cama, escutou o barulho da água no banho. Na mesinha ao lado da cama, apanhou o revólver. Checou a munição, e colocou-o debaixo do travesseiro.
Ele saiu do banho e espantou-se em vê-la ali, sentada. Estava com dor de cabeça, dissera. Foi até o armário, vestiu um short e uma camiseta, enquanto ela o observava. Veio em sua direção, passou-lhe a mão na cabeça, num gesto afetuoso, para em seguida deitar-se, apanhando um livro no criado mudo; abriu na página marcada e iniciou a leitura.

Apanhou a arma segurando-a com a mão direita, o travesseiro na frente e foi até o lado dele na cama, inclinou-se rápida, comprimindo o travesseiro contra a cabeça, e apertou o gatilho, uma, duas, três vezes. Não ouviu nenhum gemido, apenas o corpo estremecer, surpreso, para restar em silêncio. Em seguida abriu o armário, apanhou o lenço de seda azul, embrulhou a arma que guardou na bolsa.

Sem voltar a olha-lo separou a roupa com que viajaria, e saiu do quarto para não mais voltar, trancando-o por fora. Colocou tudo na sala, desligando o rádio, e deitou-se no sofá, onde adormeceu. Acordou quando já era dia, com a sensação de dor e fome, mas nenhum remorso. Foi até o envelope, pegou seu passaporte, passagem e o maço de dólares. Tirando as roupas, foi até o banheiro do corredor e abrindo o chuveiro terminou de despir-se. Vestiu-se apressadamente, e fechou a porta do passado.

O Aeroporto já se avistava. Tentaria trocar a passagem para um vôo diurno, senão mudaria o destino, agora já não importava mais onde. Nunca antes viajara sem malas. Abriu a porta do carro, deu uma nota e disse ao motorista que ficasse com o troco. A porta abriu-se automaticamente e ela procurou o balcão da companhia aérea. Estava pronta e também partiria; iria amá-lo para sempre.

 

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