VIDA CONJUGAL
Flora Rodrigues

A história deles podia ser uma história como tantas outras, não fosse o facto de nos dias que correm já ser raro encontrar um casal que tivesse partilhado sessenta anos de vida conjugal. Era esse o facto que os tornava especial e era esse mesmo facto que intrigava os que os rodeavam. Seria possível manter uma relação durante tanto tempo sem que o amor esmorecesse? Mesmo porque eles formavam um casal tradicional e conservador. O que retirava a hipótese terem recorrido aos artifícios modernos da imaginação apimentada pelos produtos disponíveis nas “Sex – Shops”. Ou apenas fingiam que eram um casal conservador? Mas se o faziam enganavam muito bem.

Não faltavam a uma missa de domingo. Os filhos foram educados no maior rigor e todos foram baptizados e frequentavam a catequese. Dispunham de boas maneiras e educação esmeradas. O casamento tinha sido católico e a noiva tinha desfilado vestida de branco cândido e coroada de flores de laranjeira como mandava o figurino. Ela tinha fama de irrepreensível dona de casa, ele de chefe de família imaculado. Não, não parecia que fingissem ser um casal tradicional e conservador, ao fim de tantos anos, se fosse fingimento alguma falta haviam de ter revelado. Teriam um cometido um pequeno deslize se é que se poderia chamar a isso de deslize. Seria aquele um casamento de verdade ou apenas uma fachada de felicidade em que um dos dois se apagava deliberadamente para que outro brilhasse? Teriam realmente sido felizes?

Se não o foram, enganaram toda a gente, pois ainda hoje o parecem ser, mas o que intrigava toda agente é que eles próprios afirmavam ao fim de tantos anos já não era o amor que importava, embora reafirmassem a grande paixão que os uniu, a emoção do primeiro olhar, do primeiro beija – mão e dos primeiros beijos trocados a medo, à pressa escondidos dos olhares atentos dos pais vigilantes da época. Se apesar de tudo isso já não era o amor o que vinha depois do amor?

Esse era o segredo: o que vinha depois do amor. A sabedoria para lidar com as primeiras desilusões, o companheirismo, a cumplicidade, entendimento tácito, o conhecimento da complexa natureza, um sentimento muito maior que o próprio amor, mas que só percebe e compreende quem viveu um grande amor, mas que por ser tão grandioso, esse sentimento nunca ganhou nome próprio.

Era isso que eles respondiam a quem lhes perguntava o segredo. Terminando sempre com o mesmo conselho: “ Amem-se sempre como nos tempos em que namoravam até perceberem que esse amor não pode crescer mais e depois do amor…” aqui calavam-se e trocavam um olhar cúmplice que valia mais de mil palavras….

 

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