HISTÓRIAS
DE TERROR: ALMAS
Eduardo Prearo
Alma aspirava a um mundo melhor. Arrependia-se com uma constância incrível das próprias palavras, dos próprios palavrões ditos de maneira superimpulsiva, animalescamente. A solidão? Ah, essa era uma amiga-monstra, era um espelho. Alma voltara da Índia no final de fevereiro, era ano bissexto; fora passear menos do que sumir com o dinheiro resultante da venda do pequeno patrimônio deixado pelo falecido marido, Albert. Mas, que pena, esse dinheirinhozão já estava terminando, se bem que havia ainda uma pensão irrisória e vitalícia para ela no valor de trezentos e trinta reais. Alma vendera a casa com dois quartos, sala e cozinha onde ambos os dois moravam logo após o enfadonho enterro. Achara-se louca ou doente por causa dessa venda, mas fê-la porque o quis. E agora hospedada num antigo hotel na Consolação, não sabia o que fazer da vida, chorava demais, e se as suas orações não surtiam efeito era porque a coisa estava preta, um caos. Mas Alma tinha uma fraca esperança de que mesmo com quarenta anos tudo melhorasse. Ela achava que quase pertencia àquela geração de mulheres que lutaram muito; de qualquer forma, não se sentia frustrada ao ver o pé em que estava o mundo, era exceção. Não tinha celular, não gostava de ser capitalista. Computador, então, nem se falava! Óbvio que se se abrisse com as pessoas, elas perguntariam-lhe sobre a família. Mas Alma não gostava de tocar nesse assunto nem consigo mesma; não teve filhos porque Albert era estéril, tinha somente uma tia insana no oeste do Amazonas. A longa viagem de navio à Índia fora surpreendente mas nem tanto. Alma vivia dicotômica, ora alegríssima, ora em depressão, vivia com raiva dessa dicotomia espontânea. A lembrança que trouxe de Madras era bonita, uma imagem da deusa Kali. Essa imagem ajudaria-na na súbita miséria? Que pobre era pobre, ela sabia, que pobre não tinha futuro, ela custava a crer.
Em uma noite chuvosa de março, Alma ouviu uns gritos vindos do terceiro andar, uns gritos de fêmea. O prazer audível de outras mulheres a aborrecia talvez porque necessitasse de um amor que a fizesse feliz assim, audivelmente. Todavia, aqueles gritos soavam esquisito, tinham componentes de horror e também notas da voz da camareira Jô, jovem bela que pela manhã pedira-lhe para passar a mão na imagem da deusa. Alma resolveu descer, mas já no meio do caminho, recuou; não tenho nada com isso, pensou; e além do mais, as mulheres estavam sempre soltando grunhidos e gritos estranhos naquela época do ano. Voltou para o quarto e dormiu. Sonhou com a deusa, e esta lhe disse que a imagem não era pra ser tocada por ninguém a não ser por quem a adquirira. Caso outra pessoa a tocasse que não a dona, morreria estrangulada. Alma acordou às sete e cinco em ponto, mas não se lembrou do sonho todo, apenas pequenos momentos dele, restos. A camareira Jô estava morta, o recepcionista veio dar a Alma a chata notícia. Fora liquidada após um estupro e depois cortada em pedaços. A viúva de repente imergiu no passado recente e viu a expressão de Jô tocando na imagem: íris desaparecidas para baixo, lábios arroxeados, enfim, alucinações.
- Fique tranquila, Alma, que o assassino já está na cadeia. Uma testemunha confiável viu um suspeito armado rondando o hotel ontem à noite. Ah, por favor, Alma, que horas são?
- Ah, são quase oito.
- Agildo, gritou o recepcionista, que horas são?
- Quase oito, senhor!
Então quer dizer que o suposto assassino entrara pela janela da vítima ou então o recepcionista estava tirando um cochilo e o assassino não fora percebido entrando?, pensou Alma. De qualquer forma, todos os hóspedes podiam estar em perigo, a não ser que a pessoa detida fosse realmente o homicida, o que não era provável. Havia um hóspede assassino, um esquartejador. Mas um? Por que Alma pensara um, hem? Podiam ser dois, três, podiam ser membros de alguma seita, alguma gang, "marginais". Alma pediu proteção à deusa Kali, mas preocupava-se por estar com a mente voltada mais para o oriente do que para o ocidente. Seja cristã, ecoava uma voz de dentro dela, seja cristã. Mas ela era uma cristã, pelo menos tentava ser uma. Fora batizada, era hoje uma católica-budista. Católica=religião, budista=ciência.
Alma passou a manhã toda no parque da Aclimação. Precisava de um emprego, talvez arriscasse o telemarketing ativo-receptivo. Não tinha dinheiro nem para um churrasco grego; mas e daí?, pensou, estava gorda mesmo! Fora uma egoistinhazona a vida inteira, era por isso que talvez estivesse naquela situação, era a lei da causa e efeito. A pensão do falecido só daria as caras depois de certamente uns quinze longos dias. Alma tomou a resolução de vender a imagem, isso! Vagaba, xingou-se de ódio no parque, vagaba!
Cora vendeu a imagem a um camelô do centro. Trinta e cinco reais não era um preço justo, mas valia a pena, visto que ela estava com uma fome de leoa. O camelô pagou a ela em notas de um real. O camelô não tocou na imagem antes de comprá-la. Alma, então, foi voltando para o hotel, ora triste e arrependida, ora alegre por estar endinheirada. Porém, algo a fez retornar até o camelô e tomar a estátua dele com toda sua força. O camelô tapeou-a violentamente, pegando a imagem de volta. Mais tarde, no hotel, Alma deitou-se mais cedo, e quando estava quase adormecendo, ouviu três batidas. Perguntou quem era e ninguém respondeu, mas mesmo assim foi abrir a porta. Um homem de dois metros de altura avançou sobre ela, arrancando-lhe o penhoar com a boca. Alma gritava, mas não sabia se de felicidade, se de terror ou se de nojo. Depois de dez minutos, estava tudo acabado. Alma abriu os olhos e disse:
- Faça agora o que quiser comigo,
meu amor! Foi bom para mim.
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