FLOATING OUT ON
THE SEA
Daisy Melo
Para a Mhel e os Cigarettes Blues
Na boca um amargo de vida. O homem dormindo ao lado ressonava forte. Ela fechou os olhos: "mais um, só mais um..." não tinha idade para enganos. Uma pontada fina na cabeça. Lembrou dos restos de carinho entrelaçados com as palavras repetidas e moles de cerveja. Um susto de mãos e saliva. Visão de corpos e cheiros; gostos e gozos. "Mais um..."
No escuro do quarto tateou o chão em busca das roupas. Achou o sutiã, embolou a meia de naylon dentro da bolsa, tropeçou na bota do cara, deu uma canelada na quina da cama, soltou um "merda!" abafado mas encontrou a calcinha caída atrás da cabeceira. Saiu com as sandálias na mão, pé ante pé, como se roubasse.
Lá fora o dia ameaçava clarear. Nuvens violetas manchadas de sol se desfaziam em tons de chumbo. Chovera toda a madrugada. O cheiro de mar e peixe tatuou a pele que se arrepiou no ar frio de outono. Caminhou atraída pelo horizonte ainda sombrio. O barulho da marola acariciava os batentes do pier, sensação fingida que se navegava pela onda fraquinha e tímida.
Não dera o telefone para o cara. Melhor assim. Melhor do que dar e não receber a chamada. Tantas vezes acontecera, tantas... tantas vezes esperara. Tantas...
A música da banda cover do Pearl Jam, ainda tocava nos seus ouvidos. Quanto bebera? Não tinha a menor idéia. Mas lembrou que embalada pelo álcool e pelo som grunge de Seattle em plena Zona Oeste do Rio de Janeiro, lançou-lhe aquele olhar fulminante: "Gata, você tem idéia do poder do seu olhar?".
Não era feio nem bonito o tal do vocalista, com os cabelos longos e o jeito de cantor de rock, casaco de couro, tatuagem no braço e tudo. A cerveja rolava rápida, olhares cada vez mais lânguidos, cada vez mais baços. A vida, riso e mágica. E o inevitável: mão e língua. Tudo acabou naquele motelzinho chinfrim, no mesmo quartinho chinfrim, igual a todos os quartinhos chinfrins que conhecera na vida.
O coração doído e roto se segura na amurada. Periga ele despencar, cair na água e aí, "floating out on the sea", vai se misturar com sal e lodo e se desfazer em maresia. Boiar no mar e na vida. Que nem bosta.
"Climbing on the mountain, floating
out on the sea
far from lights of a city, the elements they speak to me." 1
As luzes da cidade foram se apagando uma a uma. Lembrou do homem dormindo na cama ao seu lado. Era só mais um. Sentia a pontada na cabeça: ressaca das brabas. Pensou em beber uma cerveja só para saudar os primeiros raios de sol.
"Devia ter dado o telefone, droga!".
Por toda a parte amanhecia, mas ela ainda era ontem.
1 "½ Full",
Pearl Jam
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