DEPOIS DO AMOR
Bárbara Helena

"What a difference a day makes
There's a rainbow before me"

Billie saiu do saguão e se encostou na madeira envernizada da varanda, olhando o rio lá embaixo entre as pedras e o verde.
Aquele lugar era lindo de verdade.
Pela primeira vez a gente estava em um hotel de bacana, com tudo pago. Maluquices de um cara cheio da grana que se encantara com os nossos blues. E era amor pela música mesmo, desta vez não havia olhares cobiçosos para nenhuma de nós. O sujeito gostava de jazz.
Sabe o tipo fanático que guarda milhares de discos de vinil e avisa antes sobre cada acorde e vibrato, cada modulação na voz dos cantores? Ele era este.
Encontrou a banda em um bar triste e barato em Teresópolis e nos levou para o show naquele hotel na serra.
Quartos com ar condicionado e geladeira, painéis de madeira no teto, lambris nas paredes e janelas com vista para a montanha.
Os cigarettes reagiram de forma diferente -

Marina nem se abalou. Convencida de que nascera para brilhar no palco da vida, jamais perdera a pose na sordidez das periferias, nem perderia agora, diante do brilho falso dos bacanas. Era sempre a mesma - loura, fria, inatingível, arrepiando com sua voz belíssima de Billie Holliday nativa, puxando a alma de dentro dos casacos finos e dos vestidos caros como arrancava a fórceps dos Zé Manés. Ela era uma parteira de emoções , pastoreava arrepios.

Mimi andava atrás do príncipe encantado e tanto fazia que fosse entre os galãs maduros da platéia ou no corpo maciço de um caminhoneiro de Cabuçu. Mas quando cantava, como cover de Janis, esquecia tudo e era completamente blues.

Só Billie eu percebemos a gloria suprema de estar onde nunca sonhamos - ou tinha sido há tanto tempo que já perdera a cor.

Ele ficou calado e o barulho da água correndo era música. Não tanto como sua respiração na minha nuca.

Maninha... - Billie me chamava assim quando estava de bem com a merda da vida -... já pensou morar num lugar destes? Fazer parada, construir uma casa e ter um monte de bacuris?...

Eu ri baixinho... ah, como eu pensava...

Mas respondi:
- Sei lá...

Ele me segurou pela cintura e beijou de leve a raiz dos cabelos que eu prendera, alisando com a língua os cachos soltos.

- Você é tão esquisita... do que você gosta? O que você pensa? Está sempre tão calada e distante...

A língua percorria o pescoço e no resto do corpo discursos se formavam, torrentes de palavras, borbotões de verbos, adjetivos, conjunções, hiatos , hipérboles e paradoxos que se engolfavam numa sopa macia escorrendo pela garganta até morrer no coração, pássaro aflito em mim.
Não disse nada. Apenas deixei que me envolvesse, que a música suave da água entrasse e me arrastasse até o quarto, me jogasse nos lençóis macios, um eco distante de felicidade, um não acreditar que a vida podia ser.

Billie me amou como eu sabia que teria que amar desde que o mundo foi formado.

Me abriu e comeu, me derreteu feito sorvete, me levou ás savanas ensolaradas de áfricas impossíveis, me ensinou todas as notas e compôs em mim com lânguida suavidade e com paixão arrebatadora uma sinfonia singular.

Sua língua aflita percorreu, descobriu os mais secretos, me aturdiu e encantou, acendeu pequenas estrelas que cegaram e afinal me jogou nua e absoluta no grito da paixão. E Billie me rompeu e me rasgou e eu senti cada fibra de mim como se fosse única, separada e indivisível. E o caos, o maravilhoso caos se instaurou. Até nascer a luz.

No dia seguinte, amanheci.

A cama estava vazia, mas lembranças preenchiam.

Olhei a paisagem na janela e lembrei da canção:
Luminosa manhã.. pra que tanto sol? É demais para o meu coração....

Eu, que sempre vivera de migalhas, estava ali, plena, mulher, florescendo, jardim de delícias. Comecei preguiçosamente a arrumar a cama, sentindo nosso cheiro nos lençóis, não queria nenhuma camareira indiferente na minha cena.

Billie sumira. Eu o conhecia muito bem para me surpreender. Não tinha importância. Aquele era o meu dia seguinte. Apenas meu.

Combinei com Marina uma mudança nas músicas.

Quando a cortina se abriu para as palmas polidas da platéia chique, depois do Summertimes arrasador, Marina começou com voz suave e límpída:

What a difference a day made

Olhou para mim, me estendeu a mão e eu continuei, tremendo um pouco:

Twenty-four little hours
Brought the sun and the flowers
Where there used to be rain...

A plátéia sentiu o clima e ficou silenciosa, mas eu podia sentir a energia do amor pulsando em mim e escorrendo pela sala

What a difference a day makes
There's a rainbow before me
Skies above can't be stormy
Since that moment of bliss, that thrilling Kiss

Billie me olhou meio espantado, meio envergonhado e meu coração teve um baque. . Não sabia se era por mim, a fome passageira, se por Marina, a verdadeira fome, mas novamente não quis saber.

Continuei a cantar, esquecida de tudo, até de Billie, até do meu amor.

It's heaven when you find romance on your menu
What a difference a day made
And the difference is you

Naquele momento, nada mais importava, eu era a mulher depois e cada fibra de mim se sentia especial, cada memória do prazer me fazia vibrar, aveludava minha voz e se afinava com a guitarra de Billie como em um coito perverso e sensual

What a difference a day made...

A platéia sentiu a diferença e um arrepio de erotismo envolveu todos eles, atingiu Mimi no backing, alvoroçou Marina, subiu pelas paredes, saiu pelas janelas e atravessando a noite estrelada, acordou casais, consolou solidões, despertou virgens inquietas e se espalhou por sobre toda a terra redonda.

 

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