ÂNGELO E A CRISE
Osvaldo Luiz Pastorelli
Ângelo desdobrou o sentimento em quatro partes ou em quatro movimentos. Achava que poderia ter dividido em mais partes, o que deixaria de ser uma sinfonia, seria mais uma peça clássica, e não sinfonia. Mesmo que os quatros movimentos fossem subdivididos por subtítulos, deixaria de ser sinfonia. E será que para cada movimento há um determinado tempo musical? Como responder a tais perguntas se era um mero apreciador?
Pressionou o botão e a gaveta do aparelho de som se abriu. Colocou o cd e fechou a gaveta. O som da sinfonia de Mahler invadiu o ambiente da carne e vibrou os músculos cujo pulsar das veias em direção aos acordes da música. Deixou-se levar embalado no motivo do primeiro movimento o qual comandaria a obra toda. Mahler possuía a característica suave aparente, dando a impressão de superficialidade, o que era não errado, mas desprezado, pois o requinte estava em penetrar nos sublimes violinos compondo as fibras de seus ritmos melódicos e metafísicos.
Ângelo apreciava Mahler não só pelo prazer de ouvir, mas também pelo prazer de captar a crise existencial que a música transpunha para fora todo o sofrimento de tédio ou contestação de sentimentos a vociferar em ritmo tenso, pulsante ameaçando a suavidade do ouvinte. Havia um quê de temperança dolorida onde os instrumentos conduziam o pensamento para fora do corpo. Ouvir Malher era uma doença elevando seu estado numa concepção febril dia após dia, ou melhor, de acordes após acordes, sem que pudesse ter um momento decisivo para cura ou para a morte. Talvez seria a morte. A morte que rondava Tadzio, nos canais de Veneza. Porém, Ângelo não se entregava fácil. Como Aschenbach carregava a dor nos canais da sua vida. Podia parecer um distúrbio emocional ou mesmo funcional dos órgãos por ele desprezado. Era mais um estado de manifestação emocionais, talvez mentais, cuja interferência às vezes era objetivas. Esse estado que a música produzia desajustava por segundos seu tempo emocional levando-o a uma prostração quase infinita. Sentimento repentino que trazia para dentro de si um estado às vezes agradável e outras desagradáveis, mas sempre desejado.
Ângelo caia em prostração de incerteza, vacilação ao ver em sim o declínio perigoso que o atraia. Pequeno desequilíbrio que acarretava uma conjuntura, um aviltamento ao sentir a música desorganizando e ao mesmo tempo organizando. Sabia ser fase de transição onde os instrumentos de cordas se sobrepunham aos de sopro num surto depressivo levando-o as lágrimas. Ângelo se expunha a essa situação dramaticamente sem problemas, sem constrangimento onde os nervos se estiravam ao máximo para depois relaxar indefinido e sem riscos inquietantes. Era algo desgastante pouco duradouro, de tensão momentânea onde o conflito se chocava com a carência profunda.
Quando os últimos acordes vibravam as fibras do ambiente sentimental, se instalava dentro de si o silêncio da carne em total nudez, levando-o a uma calma translúcida em que se deixava ficar por muito, muito tempo.
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