ALFREDO
Kátia Rodrigues
J,
Cansei de nossas conversas intermináveis,
sem desfecho. Na verdade, eu nunca quis respostas definitivas, senão
a constatação que certos ou errados não estávamos
prontos nem acabados, e já que a vida era nossa, cabia-nos muda-la.
Mas você não! Preso ao mundo que insiste tornar pequeno, sob olhar
estreito, atribuiu-se o direito de ditar regras, criar dias e noites na vida.
Já disse, mais de uma vez que ninguém pode decidir por nós,
nem pensar por mim. Que sou única e que você o ator de uma vida
finita e sua. Se quiséssemos viver bem, e não esqueça que
bem para mim significava desenvolver quem sou e não me transformar em
quem quer que você desejasse que eu tivesse sido, teríamos tido
sucesso.
Nada disso adiantou. Então começaram nossos silêncios. Extensos,
povoados de imagens, sombras que estavam presentes na nossa distância.
Uma vez ou outra nos descobríamos ouvindo, vendo, até nos enxergando,
e estando lá eu dizia que tínhamos chegado ao fim, numa última
tentativa. E você, racional, respondia sem pressa: é uma
crise. Logo passa. E a vida seguia, ruim, como se você tivesse o
remédio, a ser usado na hora certa.
Descobri que enquanto calado olhava sua própria vida, tão sua,
eu descobria a mim mesma, todos os espaços vazios que você ocupara
um dia, e me construía.Voltei a amá-lo, por deixar-me quieta a
movimentar-me em descobertas. Revi caminhos, escolhas nossas que eram suas.
Procurei-me nos cantos da vida antiga e só tinha você: sua música,
suas vontades, seus medos. Mas eu estava lá guardada em algum armário
e era hora de abri-lo.
Pouco tempo depois recebi a primeira carta. Pensei em mostrar-lhe, mas você
chegou cansado e comecei a observá-lo, notá-lo perfumado ao sair,
mais cuidadoso consigo mesmo, e comigo indiferente. Tive muita raiva, você
não imagina quanta, mas ocupado, não sentiu nada.
Só após a segunda carta, que trazia todas as informações
sobre ela, comecei a segui-los. Então vi, por inúmeras vezes:
vocês no cinema, no restaurante, entrando em motéis, em despedidas
dentro do carro, apenas a quatro quarteirões de casa. Comecei a planejar,
cuidadosamente, nem sei bem o quê. Sair da sua vida era questão
de tempo, mas tinha que lhe mostrar o quanto você era idiota e fazia papel
de tolo.
Durante dois meses, enviei rosas vermelhas para sua amada, religiosamente as
terças feiras, na parte da tarde. Tive o cuidado de comprar em diferentes
floriculturas, e assinava somente Alfredo. Nas últimas vezes,
acompanhei de perto o entregador, e vi-o entrar no prédio enquanto ela
aguardava impaciente na varanda. Na última vez, além da assinatura,
coloquei o e-mail, evidentemente criado por mim, e antes das dez horas da noite,
ela já tinha se manifestado, curiosa. Fisguei a Bisca, eu diria. Agora
era só ganhar sua confiança, mas eu não tinha pressa.
No envelope anexo você vai encontrar todos os e-mails que trocamos a partir
daí: quase cinco meses de muito tesão, intimidade e confidências,
numerados para facilitar sua leitura. Foi bom saber por ela que o nosso casamento
só não terminava por não valer a pena dividir o patrimônio,
que era de bom tamanho. De descobrir que eu tinha atividades estranhas,
freqüentava cursos esotéricos, mas que assim eu não enchia
seu saco.
Logo nosso relacionamento ficou mais íntimo, e Alfredo, esse
incrível personagem que criei, tinha tudo aquilo que ambas sentíamos
falta em você; logo soube que o achávamos morno, repetitivo, quase
ruim de cama. Você era chato e narcisista, ela dizia. Concordei entre
risos, ao ler que também era mão aberta, generoso, dava muitos
presentes, pagava as contas e que estabilidade era fundamental! Alfredo
desde o princípio dissera que não ganhava mal, mas como estudava
em faculdade particular, pagava aluguel, não poderia banca-la.
Pouco tempo depois ela contou que você iria leva-la a Paris, por uma semana.
Contei até mil, quando dias depois você me contou que faria uma
viagem chatíssima, a Boa Vista, no próximo mês, para visitar
um cliente importante. Coitado! Eu, que não sabia exatamente como às
coisas terminariam, resolvi criar uma crise, a sua.
Tivemos um único encontro, na semana passada. Surpreso? Bobinho! Não,
não comi sua namoradinha; ela não é meu tipo, e além
do mais é burra e você sabe que eu detesto gente assim. Mas procurei
com cuidado em algumas agências de encontro, até finalmente encontrar
um rapaz bonito, universitário de 26 anos, apenas dois a mais que sua
amada.
Passamos uma semana nos encontrando, ensaiando, meu enredo, conversando sobre
as características que ele deveria ter e como sexualmente agiria, evidentemente
o oposto de você que tão bem conheço. Assim nasceu o Alfredo
em carne e músculos, um espetáculo! Penso que ela ficou satisfeita,
e você vai poder conferir (e-mail 123), já que no dia seguinte,
a conversa, que durou toda uma noite, sua musa estava completamente apaixonada,
e confessou, como seria difícil transar com você dali para frente.
Mas ela iria esperar a viagem a Paris, o carro que ganharia de aniversário
para terminar tudo, já que se agüentou até agora, desistir
seria burrice, e novembro chegaria logo. Alfredo, um cavalheiro,
respondeu apenas: um pouco mais de paciência amor, logo ficaremos
juntos. Um gentleman esse cara.
Quando terminar de ler, e confio na competência absoluta de sua secretária,
quanto ao cumprimento do horário da entrega recomendada por mim (é
uma surpresa, garanti, e como você está vendo, falei a verdade!),
as chaves daqui de casa terão sido trocadas, todas suas roupas doadas
e distribuídas pela Baixada. Meu advogado já terá entrado
com o pedido de separação, evidentemente litigiosa, e nossos bens
estarão protegidos judicialmente de seus desvarios. Se você não
enfartar durante essa leitura, refugie-se em Paris, de maneira espartana, para
não morrer de fome.
Retirei do cofre todos os dólares que guardávamos, e os transferi
para local seguro, não se preocupe.
Em gratidão aos serviços prestados, enviei dois mil dólares,
juntamente com a mala que você fez questão de arrumar cuidadosamente
antes de dormir, ao Robson, o garoto de programa que tão bem nos atendeu
O rapaz tem talento, a mesma altura que você e como ele só tem
músculos não vai precisar apertar muita coisa.
Então vá até Paris, que um dia foi nossa cidade, olhe-a
como uma luz nas suas escolhas.
Saiba que não sentirei saudades, mas generosa, além de adeus,
deixo-lhe cinco palavras: é uma crise; logo passa.
E.
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