ETERNA CRISE
Ivone Carvalho
Viviam em crise. É isso! Não eram fases melhores ou piores. Era uma crise constante.
Poderia até ser menos ruim em alguns momentos, mas jamais conseguiram viver um só período sequer sem que algo não estivesse bem. Claro que se tudo aparentava estar melhor, alguém tinha que fazer uma pergunta, um comentário, uma sinalização qualquer para provocar a acentuação da crise.
A bem da verdade, é óbvio que no começo não era assim, até porque se fosse, certamente tudo teria terminado antes até de começar. Melhor dizendo, se mal começasse já houvesse um desentendimento, com toda certeza nada teria prosseguido e, portanto, jamais teria existido essa crise interminável, constante, contundente, eterna.
O culpado? Não há! Digamos que seja tão somente incompatibilidade de gênios ou, quem sabe, gênios fortes e agressivos ao extremo. Talvez, ainda, a incapacidade de ambos de separar o joio do trigo, ou melhor, o passado do presente.
Incompatibilidade de gênios? Também não é o termo mais adequado. Gênios semelhantes, isso sim! O que parecia predominar entre eles é que em alguns pontos se completavam. Todas as ações geravam reações, com uma exceção apenas: as reações carinhosas de um lado pareciam provocar o animus animale do outro que, imediatamente, demonstrava não ser partidário de fases tranqüilas, de paz, de carinho, de amor.
Talvez, ainda, a culpa fosse da heterogenia de sentimentos. Um amava perdida e loucamente. O outro, além de negar que amava, ora através de palavras, ora através de atitudes, carregava a bandeira de que tinha que fazer tudo para destruir o amor do outro. Assim, não conseguia, realmente, dialogar. Ora resolvia pura e simplesmente questionar, exaurindo uma bateria de perguntas, não aceitando qualquer das respostas e forçando confissões, ainda que mentirosas, mas para somente saciar sua sede de destruir. Seria mais ou menos como se faz em algumas delegacias, quando se pretende a confissão de um crime. Exaure-se todas as forças, todas as energias, insere-me palavras na boca do acusado, ofende-se, suga-lhe o sangue e, já dominado, o pobre coitado acaba, para sofrer menos, confessando um crime não praticado. Ressalte-se que pessoas assim não são dadas a dar respostas, pois somente suas dúvidas é que, para elas, se tornam importantes.
Ah! que vidinha hipócrita e infeliz, viviam aqueles dois! Nenhum deles era capaz de entender como era possível ainda se falarem, se suportarem, se manterem relativamente próximos, apesar das distâncias e silêncios tantas vezes impostos.
Amor? Não! O amor existia sim, indubitavelmente, mas apenas num deles, pois se não existisse em ambos, logicamente que já nem mais se olhariam ou se ouviriam. Mas, e o outro? Por que permanecer aparentemente presente de vez em quando, se além de não amar, fazia tanta questão de transformar a relação numa eterna crise? Mas, é óbvio também que, para justificar essa permanência ao lado do outro, usava o termo piedade, porque assim acreditava que poderia machucar ainda mais o outro, já que esse sempre fora o seu objetivo. Ou, pelo menos, o objetivo demonstrado.
Ah! Eu usei o termo logicamente? Quem disse que existe lógica em matéria de amor e de relacionamentos? Lógica e amor são palavras antagônicas! A lógica é fria, calculista, egoísta, impiedosa. O amor é ternura, é calor, é doação, é perdão.
Deve estar aí, então, a explicação para a crise interminável e inabalável entre eles. Um, ao descobrir-se amando e sendo verdadeiramente amado, inconformado com sua entrega que se fazia cada vez maior, acordou de repente, ao descobrir que amar daquela forma é ilógico. E passou, então, a esquecer as características principais do amor: a ternura, o calor, a doação e o perdão.
O outro, que não conseguia sentir com a razão, pois sabia que os sentimentos são emoção, nascem e existem no coração e não na mente, foi surpreendido com as atitudes frias e egoístas do outro, restando-lhe o inconformismo de ver seus sonhos destruídos por aquele ser que tanto amava e que lhe fazia acreditar na correspondência desse amor.
E, como quem ama não mede esforços e nem tempo para ser amado ou, pelo menos, ser notado por quem ama, a dor do sentimento solitário, mas único, e a intensidade desse amor, transformam-se em armas para uma luta insana, que pode gerar conseqüências desastrosas, para a guerra da (re)conquista.
É impossível que se conheça os reais motivos de uma crise tão longa, tão contundente, tão voraz, tão medíocre, tão humilhante. Mas quando um casal se encontra numa situação como essa, é muito provável que o quadro ora pintado reflita a verdade dos fatos e dos sentimentos.
E, se assim for, não queira, ninguém, estar na pele do ser que se anula tanto, por tanto amar, permitindo que a situação chegue aos extremos que costuma chegar, quando o outro nada conhece sobre o amor, mas insiste em se dizer alto conhecedor da lógica e, dependendo até de sua idoneidade, caráter e sensibilidade, arrota ter se mantido por perto tão somente por piedade, quando facilmente se conclui que a falta de distanciamento total foi por covardia e covardia até de assumir os seus próprios sentimentos, seja assumindo abertamente e com a alma, a relação, ou seja pondo um fim definitivo na relação.
Ninguém fica ao lado de alguém por mera piedade. Ninguém precisa disso. Mormente quem tem amor no coração. Seria muito mais lógico que se acreditasse que a piedade existe exatamente em quem ama, porque quem ama sabe perdoar e sempre será amado.
Enfim, jamais será possível entender o que se passa na mente e nos corações de quem quer que seja, pois se pessoas que, pelo ardor de uma convivência nascida da sinceridade e de almas que aparentemente se completam, não conseguem ser maduras e honestas o suficiente para colocarem fim a um relacionamento em crise eterna, e sequer conseguem explicar os motivos que as levem a tal atitude, o que não dizer, então, de pessoas com quem nunca nos relacionamos?
Enfim, que eles consigam, em algum momento
de suas vidas, sentir a luz que só o amor produz e, envoltos por ela,
aprendam que a lógica do amor está na entrega, na união,
no respeito, na pureza da alma.
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