NADA
Fábio Fujita

Nem quando, nem fim, nem começo, nem sim, nem lembro
Vicente Laganaro Filho


Então ela dizia que não sabia, ela nunca sabia, jogando para ele a responsabilidade do que fazer, como se precisassem fazer alguma coisa. E sabiam, ambos, que nada fariam – o "nada" entendido como uma ação programática: ir ao cinema, matar elefantes, rodar sebos à procura de livros que não, não estavam precisando. Sabiam, ambos, que iriam preferir nada fazer: ela apenas pediria que ele fosse até ela,

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ela dizia, e ele ia. E então redescobriam o nada, virando uma só massa, pedaço de finitudes que não eram nem seriam nada nunca – ambos – mas que carregavam consigo os sonhos do mundo, ambos. Ele amou primeiro, num dia em que ela apareceu de vermelho com um sorriso inconseqüente, anjo da delicadeza, braços em torno do pescoço dele, me perdoa, me perdoa, o ônibus demorou. Nunca o amor se manifestara diante dele de forma tão arrogante, grosseira até, como no dia do vermelho, do sorriso, do anjo, dos braços, do perdão.

Ela amou depois, não muito depois, mas depois. Curioso que o conceito de amor aos poucos era dele, não dela. Ele imaginava o amor como uma sucessão de pequenas admirações detonadas a cada encontro, a cada toque, a cada palavra, a cada olhar, a cada nada. A construção do sentimento. Já ela desconfiava da vida, desconfiava tanto da vida que acabava desconfiando dela própria, ensimesmando-se em contradições não-ditas, porém pensadas, e quem sabe notadas pelos outros. Mas tinha ímpetos de amor real e respeito pelo amor primeiro – dele. E, embora desconfiada, amava. E sabia de todas as pequenas coisas que faziam do amor, amor.

Assim ele amou mais, porque ela sabia de tanta coisa, e ele tão pouco, e ele a admirava, e ele gostava, e ele a (re)descobria, e ele a amava, e ficava amando-a assim, em seu silêncio, e agradecia-a assim, com silêncios, porque ele queria ouvi-la: suas palavras, suas euforias, seus futuros, suas luxúrias, seus instintos, suas mãos, suas meninices, suas iras, seus suores, seu gozos, seus tapas, suas decepções, seus bichos de pelúcia, seus amores tortos, passados, mofados. Seus morangos. Seus silêncios. Só no amor duas pessoas silenciam serenamente. Ele queria ouvi-la. Só ela, e não ele próprio, lhe importava.

E de silêncios e expectativas, ergueu-se um amor que, sem que ambos soubessem, esteve sempre por um fio. Deles não se dizia o lugar-comum de que quando um morresse, o outro se suicidaria, porque talvez não se conhecessem tão bem. Amavam tanto que não se conheciam, porque preferiam amar a se conhecer. Mas ela desconfiava da vida. Ele, em sua ignorância de amor e quereres, assim permaneceu: ignorante. Sem saber, estavam em crise já há tempos, desde que ela começara a desconfiar que só amor não bastava. Que era preciso quebrar os silêncios – os dele e, agora, os dela –, e gritar para o mundo, e xingar o Maluf bem alto, e soltar a risada mais estridente, e chorar junto por absolutamente nada (ou porque é preciso desconfiar), e interagir, e conhecer pessoas profanas, e ficar chapado, e registrar na história audiovisual do mundo a história audiovisual deles. E buscar na história pessoal de cada um deles as pessoas imprestáveis de outrora, gente perversa, gente do desencanto, Werther reinventado. Porque bastam calmarias e qualidades, e bastam boas intenções e inseguranças, e elogios e saudades, e amores, benfeitorias, voluntariado e piedade.

O amor do "nada": estímulos na inércia, risadas no silêncio, desejo na entrega. O nada virando uma só massa, pedaço de finitudes que não eram nem seriam nada nunca – ambos – mas que carregavam consigo os sonhos do mundo, ambos. Dois corpos, uma única massa de sonhos do mundo. Dois amores, o primeiro dele e o segundo dela. Dois amores, o ignorante dele e o desconfiado dela. Ignorância. Um único amor, duas massas de sonhos do mundo. O tempo, a ignorância, a desconfiança, a crise, a ruptura, a distância, as novas geografias, a poeira.

E a história que não é mais deles. Que é deles, mas em separado, com as pessoas (perversas) que não tinham entrado na história.

 

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