CARIDADE ZERO
Beto Muniz

 
 

Lá estava eu, pagão, parado no trânsito por conta de um semáforo desregulado. Céu cinza-poluição, sol amarelo manga intenso, rachando mamona no asfalto – não, não há mamona alguma, lógico. A cada dois veículos, as vezes três, o semáforo muda do verde pro vermelho provocando a ira dos motoristas ilhados no mar de carros, reféns do conforto... Situação apropriada para os vendedores ambulantes nos atacarem. Não adianta pressa, espero passivamente, observando a paulicéia. Mais cinco carros e serei abordado pela mulher com um menino no colo vendendo Trident, goma de mascar que, teoricamente, limparia os dentes. A menos que eu acelere e ultrapasse o ônibus!

Não consigo cruzar a tempo e sou abordado pela vítima da atual crise econômica:

- Moço, compra pra me ajudar!

- Não obrigado.

- É o último, compra moço.

Maldição! Tenho que parar com essa mania de olhar dentro dos olhos dessas crianças... Bom, se é o último a história muda de figura. Não custa ajudar, mas não vou ceder facilmente. Diante de mim a cara suja do menino, uns dois anos no máximo, com olhos redondos de gato de botas (só pra quem assistiu Shrek 2). Meu coração pagão derrete-se na caridade e torna-me o mais devoto dos cristãos. Busco um real na carteira e pego o solitário Trident sabor canela da mulher “Vai na paz Dona.Tire essa criança do sol” – penso cá com minha caridade.

A mulher vai pela calçada e eu abro a embalagem para saborear minha boa ação, porém sou interrompido ao vê-la, pelo retrovisor, sacar um novo Trident da bolsa e oferecer ao motorista do carro logo atrás do meu.

Aplausos para minha cara de bobo, por favor. A caridade e o cristianismo vão pra ponte que os partiu. Sem nenhum resquício de fé desço do carro com o meu Trident sabor canela em punho e protesto, quase blasfemando:

- Hei! Você não disse que era o último? Qual é?

Ela se vira, o menino também, e sem nenhuma entonação de sacanagem na voz me responde candidamente:

- Era o último sabor canela. Têm ainda o de hortelã, alguns de maracujá e um monte sabor morango.

Palmas para minha cara de otário! Eu mereço. Penso em xingar, mandar ela tomar no cu ou coisa assim, mas há o menino com seus olhos redondos de gato de botas me encarando. Tiro uma goma sabor canela, enfio na boca e volto para o carro mordendo minha raiva e qualquer vestígio de caridade futura. Acima o sol amarelo manga, lá adiante o semáforo vermelho e aqui, novamente pagão, eu. Verde de ódio.

 
 

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