E
AS SEMENTES NASCEM DENTRO DA TERRA
Bárbara Helena
"All
I do is pray, the lord above will let me walk in the sun once more"
( stormy weather )
Não lembro nitidamente de quase nada daquela época - as imagens se encaixam como um caleidoscópio, um turbilhão fragmentado, um furacão tropical.
Nem sei exatamente quando começou o desmoronamento dos cigarette blues. Foi como a erosão das massas de barro com a chuva - a água vai se infiltrando devagar e um dia tudo desaba de uma vez soterrando as almas.
Talvez tenha sido porque Billie não agüentou mais a indiferença de Marina e começou a afundar direto no pó, no vinho barato e na tequila. Ou porque eu mesma estava no limite das minhas forças, vendo Billie se destruindo por causa de outra. Ou pelos novos integrantes que contratamos no desespero e não sabiam, de verdade, o que era um blues:
Mejicano, um instrumentista razoável,
perdido pela cocaina e a bebida. Foi ele que colocou meu Billie direto no pó.
Começou como fã, depois acompanhou a banda e se tornou a segunda
guitarra.
Nanico era baixista, parece piada, quase todo mundo fazia graça com isto,
mas tinha alma de grande músico. Só que era roqueiro de coração
e foi parar no cigarette por comida, baganas e um pouco de carinho. Feio, pobre
e baixinho, Nanico era nosso cão de guarda, alma cândida num corpo
de anão de jardim. Idolatrava Mimi e ela o tratava como animal de estimação,
dispensando afagos e ponta-pés conforme seu humor variável.
Nunca mais fora a mesma, desde o fracasso
do casamento.
Apareceu um dia, quando regressamos ao vilarejo de Cabuçu, com a trouxa
nas costas e o olhar baixo. Não perguntamos nada. Voltou a ser nossa
Janis cover, com algumas marcas a mais na bainha da faca. Ainda despertava paixões
em caminhoneiros, mas andava inchada pela bebida e as lágrimas que sufocava
nas noites da estrada.
Enfim, éramos seis cavaleiros de nosso próprio apocalipse.
E o público percebia isto. Rejeitava os blues partidos do fim de noite e aplaudia frouxamente os pagodes e forrós que tentávamos encaixar para não morrer de fome. Fome de aplausos e de comida. Cada vez mais esfarrapados, nossos sonhos percorriam as estradas empoeiradas em busca de um significado perdido.
Um dia em que o dinheiro arrecadado em um
puteiro da zona da mata, mal deu para cobrir as despesas de transporte, hospedagem
e comida da banda, Marina teve uma crise. Pela primeira vez abandonou o ar entediado
de diva intocável e chorou, se atirou no chão, rasgou suas roupas
velhas de cena, repetindo que os cigarette blues estavam acabados.
Billie tocou a noite inteira, um lamento dolorido, insuportável. E no
dia seguinte, Mejicano foi embora.
Era a última noite do contrato e fizemos um show inesquecível,
nossa despedida da estrada.
Quando Marina entrou, os cabelos louros brilhando, o ar blasé recuperado,
o vestido preto que eu ajudara a costurar de novo, aqueles homens rudes uivaram.
Mas quando ela começou, com sua voz incomparável:
Don't know why.....
todas as vozes se calaram
there's no sun up in the sky
Stormy weather,
since my man and I ain't together
Keeps raining all the time
mesmo não entendendo inglês, cada um deles tinha chuva todo tempo no coração
Life is bare, gloom and misery everywhere
Stormy weather, just can't get my poor old self together
I'm weary all the time, the time, so weary all of the time
e a chuva escorria por toda parte em mim,
em nós, naqueles homens e mulheres cansados da nudez e da miséria.
Mas por sobre a noite escura da lama brilhava o blues
All I do is pray, the lord above will let me walk in the sun once more
E o sol voltava a brilhar ali, naquele lugar miserável, pelo milagre da música. Billie tocou como nunca, Mimi era de novo Janis e eu fiz o mais belo backingf de que me lembro nesta vida desgraçada.
As casa veio abaixo de palmas, os homens nos procuraram no camarim, fomos outra vez jovens e disputadas. Billie recebeu elogios e notas, até Nanico foi rei por um dia..
Naquela noite mesmo arrumamos as malas e
seguimos para outra cidade.
Quanto mais o trailer se afastava, mais eu percebia que o fundo do poço
estava longe.
Um pássaro cantou em algum lugar da madrugada.
Não lembro nitidamente de quase nada
daquela época. Mas lembro, com muita clareza, daquele pássaro
cantando.
E do cheiro da grama molhada.
E da visão que me trouxe de sementes renascendo dentro da terra.
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