MEDO
Virgínia Pinto

Poderia ser mais um dia no meio de tantos, mas não era. Estava na hora de enfrentar uma das situações mais temidas e inconscientemente rejeitada. O prazo estava no limite. Era o último dia para entrar com a documentação e aguardar, pacientemente, na fila do INSS.

A informação recebida no 0800 estava errada e o sonho de ir a um Posto do Shopping, com ar condicionado e estacionamento, morreu na primeira fila.

- Senhora, aqui não recebemos documentação para Auxílio- Doença. Dirija-se ao Posto da rua tal, número tal, aqui pertinho mesmo, pode ir à pé.

Fui. E tinha outro jeito? Atravessei passarela, caminhei por ruas de gente estranha pra todo lado, com minha fiel escudeira e secretária me animando e dizendo sem parar que era pertinho.

Na segunda fila do dia, recebi uma senha com letra e número (S-749). O atendente disse que tive sorte, por que era das últimas senhas do dia. Fiquei muda ao imaginar que teriam todas aquelas pessoas antes de mim e rompendo a barreira dele de autoridade, perguntei:

- Tem idéia de quanto tempo demora?

- De três a quatro horas.

Em silêncio, numa sala imensa, com guichês de atendimento de A a Z e suas respectivas filas, caminhei procurando o local adequado para aguardar a minha sina, ou melhor, minha senha. Todo aquele mar de cadeiras estava ocupado. Tinha gente em pé e sentada por todos os lados. Olhei em um dos terminais que mostravam a próxima senha a ser atendida e o número estava na casa dos duzentos. Tive uma sensação de vertigem. Respirei fundo e cochichei com minha acompanhante:

- Será que vamos sair daqui hoje?

E ela sempre positiva.

- Claro que vamos, a fila já está andando e olha lá dois lugares para sentarmos.

Confesso que nesta hora fui guiada pela força e perseverança dela, já que o desânimo tomava conta de mim. Sentamos e tentamos juntas entender qual era a relação das letras com os números a serem chamados. Impossível decifrar. Pulava do S 283, para o W 302, depois vinha o T 299. Alguém sentado ao nosso lado tentava explicar ao seu vizinho a lógica da seqüência, mas minha cabeça rodava, minha boca secava e meus ânimos escoavam ladeira abaixo.

No meio de minha confusão mental e do silêncio, veio uma voz de longe.

- Aceita uma balinha? É de erva-cidreira. Sempre que venho aqui, na véspera compro balas de erva-cidreira. Acalmam e dão açúcar no sangue.

Aceitei imediatamente. Quando senti o sabor dela na boca, fui logo me acalmando e achando, pela primeira vez naquele dia, que iria conseguir suportar uma fila do INSS.

A senhorinha da bala, começou a interagir com algumas outras pessoas ao lado, pois já estava ali há mais tempo do que eu e sabia dos números dos companheiros de espera. Ela torcia para que o número do moço de trás fosse logo chamado e ficava alerta.

- Agora é você. Ainda não. Olha lá. Foi ela então. Tomara que seja chamado pelo atendente do guichê 20 , ele é o mais rápido.

E assim o tempo foi passando, o desânimo se transformando em esperança e as filas andando. Depois de duas horas, precisava ir ao banheiro e calculei que ainda demoraria um bom tempo para ser atendida. Quando lavava as mãos, fui surpreendida pela loira que estava no espelho ao meu lado, enquanto ajeitava o cabelo todo desarrumado e pintava os lábios de um vermelho carmim, me perguntando:

- A Creusa veio trabalhar hoje?

Olhei para trás, tentando descobrir que não era comigo, mas estávamos sozinhas e neste momento entendi que a loira do banheiro não batia bem da cabeça e fui logo respondendo:

- Não sei. Acabei de chegar e ainda não vi ninguém.

- Ah, tá tudo em greve, ela deve estar de greve também.

Concordei imediatamente e fui saindo de fininho rindo por dentro. Cada gente louca, neste mundo...

Na volta, localizar meu assento não foi fácil, era tanta gente! Ao encontrar, fui logo querendo saber do andamento da fila. Resolvi fechar os olhos para relaxar e suportar um pouco mais aquela desagradável sensação de esperar, esperar e esperar.

Acho que tive sorte. Estava perto da hora do almoço e muitos eram chamados, seguidamente, e os da letra S foram indo, um a um e finalmente, após três horas e trinta minutos, chegou minha vez. Todos os documentos estavam corretos (Salve minha querida contadora!) e o mito foi desfeito. Consegui suportar a fila do INSS.

Quando você adoece e vê a morte de perto, descobre o quanto viver é bom. Que complicamos a vida muitas vezes , por que temos MEDO. Medo de esperar, medo de errar, medo de suportar, medo de sofrer, medo de MORRER. E neste momento me lembro de quando, numa situação de perigo, perguntei à Mariazinha:

- Você não tem medo de morrer?

E ela respondeu no meio de uma gargalhada.

- Que nada, se eu morrer, eu me viro!

 

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