BRASIL, 2012
Marcelo d'Ávila

“Até que um dia
O mais frágil deles
Entra sozinho em nossa casa,
Rouba-nos a lua e,
Conhecendo nosso medo,
Arranca-nos a voz da garganta
E porque não dissemos nada,
Já não podemos dizer nada.”

Eduardo Alves da Costa


O silêncio quase absoluto só é quebrado pelo ruído das teclas sendo pressionadas. Escrevo como última e desesperada forma de deixar algum registro para as gerações que virão – se elas existirem. A escrita tornou-se o único meio de expressão, mesmo que clandestino, desde que o governo calou nossa voz. Literalmente.

Primeiro, foi a Lei do Silêncio. Como em um sermão de Niemöller, não fizemos nada, apesar das prisões dos que insistiam em se pronunciar contra o regime. Foram arrastados ao cárcere jornalistas, poetas e cantores. Quando começaram a levar também os estudantes e os operários, os advogados e os professores, os médicos e os estivadores – qualquer um que ousasse manifestar uma opinião – é que houve a revolta popular. De início tímida, com o tempo foi tomando vulto. A revolta era ainda mais intensa porque o governo que agora oprimia fora eleito licitamente pela vontade da maioria. Então foram proibidas as reuniões, mesmo as familiares. Como as vozes principiaram a se elevar, foi autorizado o uso da força. Às vozes calaram com tiros e torturas. Mas os mandatários do regime perceberam que não seria possível silenciar a todos desta forma.

Foi assim que o poder central determinou a retirada cirúrgica das cordas vocais de todo o cidadão comum. Depois de cadastrados e apreendidos, todos tivemos extraídos nossos órgãos da voz, gerando o silêncio tão almejado pelos governantes. Não podemos mais expressar nossa opinião. Nossas mulheres já não gritam quando são violadas, reiteradamente, pelos agentes da repressão. Só percebemos o choro de fome de nossos filhos através das lágrimas inocentes que descem pelas faces pálidas, pois não há um som sequer que saia de suas doloridas entranhas. Não há mais música. Não há poesia. Só silêncio.

O silêncio quase absoluto que só é quebrado pelo ruído dessas teclas. Escrevo enquanto ainda é tempo.

Quando percebeu que começávamos a escrever com vigor cada dia maior, o governo editou a Lei da Escrita. Permite-se apenas aos órgãos oficiais manifestar-se através da palavra grafada. Ao cidadão comum proíbe-se a escrita, sob as penas da lei. Entenda-se execução sumária. Como antes, os mandatários federais perceberam a inutilidade de sua legislação. Os panfletos, os romances e os contos, os sonetos e as elegias, os ensaios e as novelas prosperaram pelos becos escuros, ganhando os corredores das grandes repartições, as linhas de montagem das fábricas, as enfermarias dos hospitais e sanatórios.

Então mandaram arrancar nossos olhos.

Enquanto espero, em silêncio, escrevo minhas últimas e desesperadas linhas como testemunho de toda uma geração, ouvindo o ruído breve do teclado e os passos dos agentes que sobem pela escada.

 

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