INOCENTES
Mairy Sarmanho
Silêncio...
Silêncio que meu anjo dorme sob a miúda camada de folhas colocadas
displicentes por quem o silenciou. Não interrompam seu sono de candura
por motivo algum: calem-se aves, engulam sementes a lhes trancar a garganta
para dali não mais sair qualquer tentativa de canto; anjos da morte evitem
os vôos sobre essa floresta úmida porque o bater de suas asas irá
acordar essa criatura adormecida; ventos, por favor, evitem soprar para não
tocar seu corpo gelado e atrapalhar seu sossego; flores, evitem crescer porque
suas células multiplicando-se alertarão o pequeno que seu tempo
acabou. Não o quero sofrendo mais. Desejo apenas ser capaz de proteger
sua dor já que não fui capaz de evitar sua morte. Gostaria...
Gostaria de emhalar meu pequeno e lhe contar histórias para dormir. Porém
minha voz não mais o alcança e para ele só consigo dirigir
meus pensamentos. Não choro. Evito, a todo custo, que a dor lhe alcance.
Quero-o em paz. Ainda que para mim isso nunca ocorra. Queria reviver o passado,
girar a roda da infortuna ao reverso, transformar noite em dia, arrancar sua
morte das mãos do cruel que o dizimou, ascender sua alma para junto da
minha e agasalhá-lo entre meus braços suaves de amor. Entretanto...
Entretanto Deus ou sei lá que forças ambiciosas que nos impulsionam,
não permitem. Calo meus sentimentos e finjo ser feliz para assim faze-lo,
talvez, também feliz. Guardo seus brinquedos na caixinha de sapatos enfeitada
com brocados e o sabonete perfumado junto ao meu travesseiro, para sentir, ao
menos um pouquinho mais, seu cheiro gostoso de inocência. Isso o infeliz
não pode roubar: tenho certeza. Ele morreu acreditando nas mentiras contadas
e, de uma forma ou outra, vai me procurar novamente para sobrevivermos a tudo.
Como sempre fizemos.
Não ouso mais acreditar no ser humano. Afeta-me o fato de todos terem,
bem dentro da alma, alguma coisa do assassino, o mesmo gem que o une a todos,
nossos noventa e cinco por cento de igualdade que nos faz detentores de uma
crueldade sem limites. Prefiro apostar nos animais, nas plantas, nas pedras,
em qualquer coisa que não seja parte de nossas genéticas indecentes
e malditas. Sei que, assim, estou me odiando um pouco porque ainda me sinto
culpada do crime não cometido. Mas, no fundo, concendido. Adentramos
nesse mundo, se é que existe alguma ordem cósmica no universo,
para aprender a lidar com nosso lado medonho. Infelizmente poucos o conseguem.
Desprezo o humano. Sou humana.
Todos os dias, quando a noite chega, percorro em silêncio os becos escuros
de meus pensamentos e reencontro, coração aflito, o pequeno morto.
Torno-o vivo meia hora antes da meia-noite para reenterrá-lo meia hora
depois. Todos os dias, quando o sol reaparece, irônico, cruel e dilacerante
por cima do telhado de minha casa, eu me encolho e percebo que estou na floresta,
abraçada ao pequeno corpo recoberto displicentemente com folhas esperando
apenas a vida terminar e a noite chegar, novamente.
Silêncio, brisa, não ouse tocar nossos cabelos revoltos!...
Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.