ENTRE O PIANO
E O VIOLINO
Leila de Barros
Fim de tarde e Natália ainda está no quarto do hotel-fazenda observando a decoração e o piano fechado... É fim de inverno também e ela vislumbra o ocaso dourado e forrado pela esperança mansa de uma pauta musical com toques de Vivaldi.
A janela aberta na direção do imenso jardim convida à reflexões e ela deixa que a alma sorva a paisagem e volta-se para o piano silencioso. Os pássaros se incumbem de comandar uma orquestra ruidosa e lenta, como uma batuta regendo em adágio.
Mas, Natália anda em fuga. Coração ao vento, feito pipa, corpo com sede de lagos e toques perenes.
Ela pensa na Bósnia, nas crianças órfãs e seus rostos delicados, com olhos cor de céu. Pensa nas meninas e meninos da Índia, cujos corações desejam a purificação no Ganges, lembra das crianças iraquianas e seus sonhos estilhaçados. Lembra das crianças da Candelária e da praça da Sé, com olhos lentos e cheiro de cola.
Pensa no seu tempo de ativista política, na atual posição de gerente de empresa multinacional e na decisão pendente que lhe pesava como o badalo do relógio de carrilhão.
Começa a observar as minúsculas flores brancas que se abrem no pessegueiro e olha de esguelha para o jornal do dia.
- Hoje não li o jornal, ela recorda.
Demora-se a olhar novamente para a mobília do quarto e lembra-se do seu próprio piano e no espaço que ele ocupa, intocável há anos em seu quarto.
Sente no silêncio um desafio, um hiato e um alento. O tempo parece rugir e Natália deseja caminhar descalça na relva macia sob a aragem do ocaso.
A mente vagueia, o coração amansa e os pés sentem o afago telúrico da grama e dos seixos.
- Fazer aniversário é sempre tão nostálgico, ela pensa.
Ela não desejava festa, mas sim uma orquestra de violinos no topo de um vulcão inativo.
Desejava fazer amor com Vivaldi, ouvindo
frases em italiano!
O treinamento da empresa havia terminado e o final de semana estava acabando
também. Teria que ser cara ou coroa e o silêncio estava sendo um
bom conselheiro, porém teria que ser rompido, como um sol rasgando o
horizonte.
Natália finalizou a arrumação das malas, desceu lentamente as escadas do hotel e regularizou sua saída. Enquanto dirigia pela estrada campestre, observava as flores amarelas dos ipês espalhados pelos arredores.
E ela decidiu pela venda do piano e pela compra de um violino. Ao completar cinqüenta anos, desejava ouvir seus próprios sons e silêncios, intermeados por cordas vibrando em todas as paredes e cortinas de seu quarto.
Iria aceitar o cargo de diretora de Recursos Humanos da empresa e adiaria mais uma vez seus planos de mudar para um local mais bucólico.
Se houvesse necessidade de chorar, ela
o faria em um belo Mercedes, o que amenizaria quaisquer lembranças ruinosas
e lhe garantiria as aulas de violino e uma aposentadoria que lhe permitisse
viver na pradaria ou nos Jardins!
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