O
ÚLTIMO BEIJO
Jorge Gomes da Silva
Com uma passada regular, em corrida moderada, percorreu as ruas da cidade como era habitual. No horizonte, o breu deixava-se já conquistar pela primeira luz do prenúncio de uma nova manhã.
O rio parecia sereno, mais até do que o normal. Parecia um espelho velho, reflectindo apenas alguns salpicos de luz que lhe ofereciam os candeeiros à reflexão.
Continuou a correr, alheando-se por momentos
daquela estranha imagem, enquanto aguardava o chilrear da passarada e o barulho
dos motores mais apressados da hora de ponta.
Quando o sol despontou, José parou de correr. Na ponte, mais acima, não
se fazia sentir o zumbido de mil abelhas que o rodado das viaturas provocava
àquela hora. Na linha do comboio, atrás de si, nenhuma composição
carregada de gente dos subúrbios rumava à próxima estação.
Recuou ainda mais o olhar. A estrada vazia, cinzenta e vazia, patética
como todas as estradas que não cumpriam o papel que lhes era destinado
à partida. Apenas um rasgo escuro no meio do chão, pintalgado
de traços brancos que cumpririam um desígnio idêntico aos
dos carris de metal que a ladeavam.
José ficou preocupado pelo cariz de tais indicadores. Deitou a mão ao telemóvel e deu por falta dos indicadores do sinal de antena. Inúteis no lado oposto do visor, os gémeos dos ausentes reflectiam a carga total da bateria que passara a noite ligada ao transformador.
Devolveu o equipamento ao bolso do fato de treino e decidiu caminhar na direcção da esplanada onde bebia todos os dias uma água mineral da mesma marca. Gabava-se ao João do café da sua capacidade de distinguir as águas umas das outras e chegara a ganhar apostas, se adivinhar não pago, se perder pago duas. O lingrinhas do balcão julgava-se mais esperto do que o colega que servia as mesas. Filho do dono, acordava convencido de uma esperteza comprada que distinguia dos restantes as pessoas bem sucedidas. Contudo, era ele quem enchia os copos, meia dúzia, cinco com água da torneira mais um com o conteúdo de uma garrafa. Bastaria a diferença de temperatura para o denunciar no esforço imbecil de lucro fácil à conta do José, mas este percebia a diferença pelo sabor, pelo rasto adocicado que a água da sua marca preferida lhe deixava na língua.
Deu de caras com a porta do estabelecimento
fechada, mesas e cadeiras amontoadas no interior, e isso acrescentou alguns
pontos na sua escala de preocupação. Olhou em redor, sedento de
sons e de movimento e da sua água mineral. Nada de novo. Nem o rio, agora
banhado pela luz intensa de uma manhã estival, enviava para a margem
uma ondulação que denunciasse a chegada de um cacilheiro sonolento
ou o regresso pesado de uma traineira ao seu ponto de descarga na docapesca.
José não conseguia encontrar uma explicação para
o fenómeno e confiou o cérebro em pânico ao desvario da
especulação. Ocorreu-lhe alargar a passada e embicou para a esquadra
de polícia, cada vez mais assustado, perturbado pela ausência de
um som que nem o vento soprava nas copas das árvores e as aves não
despertavam para saudarem o novo dia outra vez. Parecia que o dia não
estava a acontecer, tirando o sol que subia no céu e confirmava o movimento
do planeta. Mas nem isso bastava para sossegar o José.
Corria por entre os carris do eléctrico,
alucinado, adivinhando a cada passo o que o esperava no largo da esquadra e
foi exactamente o que encontrou. Ninguém de sentinela à porta,
ninguém para atender a sua queixa inédita no lado de lá
do balcão. Um dia de sonho para qualquer ladrão, houvera um que
cruzasse as ruas nesse instante e descobrisse como o José a ausência
de indivíduos fardados de azul no seu mais óbvio paradeiro.
Os carros patrulha imóveis, alinhados junto à parede, tinham as
chaves na ignição mas o José nunca se atreveria a entrar
em algum. O suor escorria-lhe pelo rosto mas a boca parecia mirrar, ressequida
como uma alga deixada ao abandono na praia pelos caprichos da maré.
O coração batia-lhe com força no externo, como se estivesse desesperado pela libertação daquele corpo sem graça, daquele tipo careca a caminho dos cinquenta quase sem histórias de vida para contar. Como se buscasse uma segunda oportunidade na hipótese remota de um transplante sem rejeição. E a mente descontrolada que fantasiava ataques químicos terroristas com substâncias secretas do arsenal de uma antiga potência militar percebeu então o que se passava no interior em colapso do crânio de José.
Fingiu que não percebia as imagens
difusas do que pareciam pessoas, recortadas no fundo azul do céu. Fingiu
que não ouvia as palavras apanhadas ao acaso, liguem para o..., afastem-se
para ele poder.... E fingiu não reconhecer o rosto do João do
café, esparramado contra o seu num beijo bizarro, desajustado, alternado
com massagens à bruta que deixaria de sentir quando o céu começou
a escurecer e a dor intensa no peito do homem prostrado finalmente desapareceu.
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