OS SILÊNCIOS
DE GUSMÃO
João Peçanha
Porque, muito embora Gusmão de
Matos não se considerasse homem de ter medo de coisas do outro mundo,
aquela noite estava particularmente escura e, mesmo já passando muito
das onze horas, não conseguia pegar no sono, preocupado que estava com
algumas promissórias que venceriam dali a alguns dias. Porque todos já
tinham dormido e os únicos sons que se conseguia escutar, além
dos seus pés espalhando o cascalho do caminho estreito que ligava a casa
principal à casinhola dos fundos da propriedade, era o da sua respiração
pesada de tabaco e do piar de uma coruja insone como ele. Porque, sem dúvida,
seus pensamentos estavam distantes do caminho a seguir, já que conhecia
de cór todos os atalhos da fazenda. Porque a chuva, que ameaçou
cair desde o final daquela tarde, de repente desabava sobre a planície
e rapidamente criava poças d'água das quais ele tentava em vão
se desviar. Porque a luz fraca do lampião a gás pouco iluminava
o espaço à sua volta, mas, afinal, nada era de graça neste
mundo, pensava.
Chegou à casinhola de teto baixo e abriu cuidadosamente a porta estreita,
esgueirando o abdômen saliente por ela. Fechou a porta tão silenciosamente
quanto possível e sacudiu a chuva do corpo. Seus pés estavam sujos
de lama. A luz fraca revelou porções do pequeno recinto, permitindo-lhe
reconhecer no canto, à esquerda, a cadeira de balanço que acompanhava
a linhagem dos Matos há mais de dois séculos; no centro da parede,
em frente à porta, o móvel de madeira escura no qual, desde que
se reconhecia gente, guardava-se os panos da casa, mas que há dois verões
tinha sido alvo de um bando esfomeado de traças; acima do móvel,
a moldura oval com o retrato de seu avô, orgulhoso de seus bigodes vastos
e jeito de poucos amigos, sentado numa banqueta tosca e ladeado por duas mulheres,
uma mais velha e outra com seus trinta anos; à direita, colada à
parede externa, a penteadeira antiga de cristal bisotado jazia coalhada de objetos
antigos de toucador e, quase inalcançável à luz do lampião,
a cama de viúva, que tinha vindo com a herança da tia, de quem
não se esforçava para lembrar o nome, que morreu sozinha, contorcendo-se
com um câncer que demorou quase dez anos para lhe comer inteiramente as
entranhas. Há gente que parece lutar para não descansar, pensou.
O bruxulear do lampião desenhava, para quem medrava nesse mundo, fantasmas
de fantasmas; brincadeiras que o olho dos medrosos fabricava com o fim de torná-los
cadas vez mais prisioneiros de si mesmos e de suas lembranças. A coruja
piou novamente, desta vez um piado longo e triste. Uma gota de chuva escorreu
solitária por toda a extensão de sua testa, seguiu até
a ponta do nariz e foi colhida pelas costas da mão direita de Gusmão
que depois a enfiou por dentro das fraldas do pijama de flanela e bolinou o
próprio pênis. Virou o corpanzil à direita e caminhou, balançando-se
de um lado a outro como um urso, enquanto o primeiro trovão explodia
em algum ponto da planície. Aos poucos, conseguia divisar dois olhos
assustados que se abriam quase imperceptivelmente de tempos em tempos, vigilantes.
Eram olhos pequenos e pretos feito urubus que, à medida que ele se aproximava,
não se fechavam mais, ao contrário, fitavam-no cada vez mais assustados
e redondos, parcialmente protegidos pelo lençol azul com motivos florais.
Estava tão próximo que podia sentir o cheiro do medo. Riu-se,
asseverando para si mesmo que esse mundo estava prenhe de gente com medo da
própria sombra. Sentou-se na borda da cama, como se com cuidado para
não acordar os fantasmas da família que habitavam a casinhola
há séculos. A chuva tinha aumentado e apareciam em alguns pontos
do aposento pequenas goteiras, martelando o piso de terra batida. Mesmo que
a chuva e os trovões não tivessem transformado aquela noite numa
noite ruidosa, certamente ninguém, em léguas de distância,
conseguiria escutar sua voz grave e calma, cochichando:
- Está dormindo?
Os olhos da menina piscaram e miraram-no assustados, já que outro trovão
sacudia a Terra. Ele podia perceber o horror quase sólido que emanava
deles. Insistiu, desta vez com voz forte, afastando de vez qualquer presença
do outro mundo:
- Está sem sono?
Não conseguindo esquecer os motivos de seu pavor, ela permaneceu calada
e imóvel, vez por outra procurando nos castanhos dele a coragem que faltava
nos seus negros. Ele pousou o lampião na banqueta ao lado da cama e girou
o registro do gás à esquerda. A luz forte inundou o quarto, expulsando
as sombras que davam medo àqueles olhos, que agora espremiam-se, acostumando-se
à luminosidade e agradecidos por ele ter expulsado os fantasmas do aposento:
- Eu não estava conseguindo dormir, papai. Tenho medo de coruja.
Gusmão de Matos, o dono daquelas terras e senhor de todas as mulheres
de sua família que viviam na propriedade, respeitado, amado e odiado
na mesma proporção, sorriu com satisfação. Medo
de coruja? Ela era só uma criança. A voz grave amansou, apascentadora:
- Não precisa ter medo. Papai está aqui.
Então, pegou a menina nos braços, beijou carinhosamente os seus
cabelos pretos escorridos, curvou o corpo pequeno sobre o estrado centenário,
abriu a braguilha e, enquanto o terceiro trovão da noite tonitroava lá
fora, assustando animais e homens, repetiu mentalmente para si mesmo, à
medida que levantava a pequena camisola barreada com crochê, que, à
semelhança dos demais homens de sua família e conforme sempre
declarara em seus quase cinqüenta anos de idade, com certeza, era o homem
mais feliz que já tinha conhecido.
Acordou com sua mulher reclamando de seus pés sujos de barro manchando
o lençol branco. Desafiador, esfregou-os um no outro, levantou a cabeça
e franziu o cenho o bastante para que ela entendesse que não estava para
muita conversa naquela manhã. Seu corpo doía, como se tivesse
passado a noite inteira em claro. Espreguiçou-se e saiu da cama. Abriu
a cortina. O sol amarelava a paisagem. O dia seria quente, pensou. A voz de
sua mulher veio da cozinha:
- A Lina ainda não acordou. Deve ter tido insônia de novo.
- Peça para alguém ir nos fundos acordá-la.
- Já pedi, mas ela não quer acordar. Diz que está com medo.
- De quê?
- Da chuva.
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