SILÊNCIO SELETIVO
Fábio Fujita
E de repente, tudo é silêncio: o silêncio do virar de páginas "daqueles" livros (Clarice ou Hesse ou Camus ou Maughan), o silêncio da água que fervo para o café, o silêncio das multidões, dos filmes verborrágicos, dos discursos panfletários pró-Bush, das britadeiras enfurecidas, da habilidade zero no prego que prega o meu dedo e não o prego na parede sem pregos. O silêncio da sistemática, de pregos pregados e toalhas limpas. O silêncio da digestão. O silêncio do meu sexo solitário. O silêncio das mil e duas vozes. O silêncio dos cavalos dopados, das escravas brancas pós-modernas. Das patas arrastadas de rinocerontes gigantes pelo meu living room. O silêncio do oráculo e do patrão burro. Do teclado de dez dedos. Dos sapatos com sola de borracha e dos pisantes do Robocop. O silêncio amargurado e o ansioso. O silêncio das risadas frescas e das caducas. O silêncio ensurdecedor e o resignado. O contemplativo e o caótico. O silêncio do caos. O silêncio do resto. As palavras desnecessárias.
Silêncio seletivo. Num minuto, a voz que anulava o silêncio do mundo - do meu mundo - não mais me pertencia. Não o pertencer como posse, mas como orientação. Como o atleta - mesmo o cabeça-de-bagre - que não entra em campo sem dar três pulinhos, geralmente ridículos, com a perna direita. Ou os que se escoram na prece como paliativo para suas próprias ruínas. Num mundo perfeito, silêncios e preces seriam descartáveis. Na imperfeição do meu mundo, há silêncio na voz fugidia e fúria com os cordeiros de Deus.
Que seja silêncio, pois. Mas com Chico, Lenine, Salmaso, que ela tanto gostava, como pano de fundo, porque o silêncio grita, me xinga de babaca, me cospe, e não sou masoquista o suficiente para suportá-lo em sua pureza. Eu o odeio, ele me odeia: zero a zero. O silêncio maquiado. Num minuto, em dois minutos, num mês, num ano. A gradação de um silêncio que simboliza não a adaptação a ele, mas a matéria de memória ensimesmada, engolida. Num minuto, ela como a expressão do meu eu bom, do meu eu orgulhoso. Sua voz e minha orientação. Os sons de tudo o que poderia ter sido. Bandeira. A pulsão da vida. O ninar de adulto. O piegas e o pedante exorcizados como "meu amor". O não-silêncio. Ai meu amor para sempre, nunca me conceda descansar. Chico. Em dois minutos, o sempre enquanto dure. Vinicius. Sábios os poetas.
Num mês, um segundo ou mil anos, num milênio, um minuto ou sete encarnações. Essa imprecisão do tempo quando o tempo não precisa ser preciso. O tempo não pára. Paramos nós. Parados, estatelados, silenciosos permanecemos. Permaneço. Permaneceria até o fim dos tempos, mas as minhas diferenças com o silêncio impedem a minha inércia. Um pouco daquela voz, é tudo o que preciso. Um milênio, ou dois segundos, depois do sempre partido, não importa. Não me importa. Há um certo tempo de resistência em procurá-la (não de orgulho ou da empáfia de amor próprio - é outra coisa), a que você se permite para que simplesmente a nova ordem se estabeleça: sua voz e minha orientação, agora, seguem em jornadas paralelas. Não é pouca coisa. Não para mim. Mas daí vem uma quase-necessidade de saber "como ela está". Não o protocolar. O de verdade.
Então finalmente disco o seu número, e o alô é inconfundível. Não só pela voz, mas pela forma de verbalizá-lo, de acentuá-lo, de expressar carinho, respeito e curiosidade pelo interlocutor, de colocá-lo pelo bocal até chegá-lo a mim. Alô. Sim, sim, é o seu alô, não há dúvida. Então finjo uma conversa natural mas, como sempre, deixo que ela fale, talvez por eu saber que aquela voz é antiga e efêmera, como quando comemos algo muito gostoso aos poucos, pra não deixar que a satisfação se esvaia assim, num estalo. A delícia posta na posteridade possível. E enquanto ela fala, dizendo se está bem se está mal se ficou deprimida se está eufórica se amou se detestou se suicidou-se aos poucos ou se partirá para o Nordeste - não prestei muita atenção - eu assimilo a efemeridade, e o silêncio represado há tanto (um segundo? vinte e sete noites? dois palitos? treze séculos?) percorre pelo meu rosto, encerrando-se em gosto salgado na minha língua. Limito-me a mugidos (a-hã, é, não, acho, também) e ela não percebe (como poderia? e para quê?). Ela está bem.
Eu e os meus silêncios. Um mundo dentro
de mim. Igualmente caótico.
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