UM ANJO PRATEADO
NA NOITE
Edson Campolina
Sentou-se sobre as pernas cruzadas e, apoiando os braços nos joelhos, se pôs a meditar como indicado no livro. Cerrou os olhos até que a escuridão chamasse seu primo silêncio. Ignorando os sons da noite, concentrou-se na porta do nada que se abrira para que tudo entrasse e tudo saísse fluindo na energia de sua respiração.
A brisa soprava pela janela os ruídos da cidade: o apito melancólico do último navio despedindo-se do porto, coaxares, grunhidos e cricrilares. A imensidão escura da noite engolia os gemidos dos enfermos e moribundos, das meretrizes, o choro dos abandonados e o lamento dos apaixonados, o esconderijo dos culpados e a sofreguidão dos inocentes.
O relógio parou de contar seu tempo. Sua alma libertou-se do corpo e sobrevoou a cidade dormida como um anjo alado. Visitou amores antigos, as arborizadas praças com seus chafarizes, jardins e bancos riscados por corações outrora enamorados em noites enluaradas. Cumprimentou a solidão das esquinas, guardiãs dos segredos da cidade. Pendurado no estribo do bonde de suas ilusões, passeou pelas lembranças dormidas, envoltas na névoa do passado. Brincou com os pés no rio que banhara os jardins de sua infância.
A madrugada rompia-se no mais reconfortante
silêncio. O anjo alado, prateado pela reluzente lua, sentou-se na janela
da torre do sino da capela e aguardou o anúncio da aurora pelos galos
dos quintais. Como um pêndulo dourado, o sol ergueu-se detrás da
muralha verde ofuscando o brilho das derradeiras estrelas. Uma rajada revirou
as páginas do livro à sua frente acordando-o para o roncar da
velha cidade. Os primos silêncio e escuridão aprisionaram novamente
a alma do bom moço.
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