SHHH...
Edison Veiga Junior
Marcar hora com ele não foi possível. Vive à moda antiga não tem assessor de imprensa nem secretária, dispensa telefonia fixa ou celular, não freqüenta lugares públicos... Enfim, é um misantropo completo.
Encontrei-o pela primeira vez no meu quarto
mesmo, numa dessas noites em que a sozinhez chega em trajes taciturnos com uma
xícara de café sorumbático, ainda que fumegante. Nem me
pediu para entrar e foi logo se achegando, sentando em minha cama, se apossando
do meu travesseiro. Invasivo, não perguntou por quem eram minhas lágrimas,
tão menos se prontificou a enxugá-las. Foi se aumentando, tomando
conta do ambiente, deixando-o tão gritante quanto oco, indizível.
Insuportável.
Difícil entrevistá-lo, pensei. Primeiro que é invisível,
e como vou entrevê-lo para entrevistá-lo se sequer o vejo? Segundo,
e mais trágico ainda, que, cruel oximoro prosopopaico, quanto maior,
menos se escuta e quando se dá a ouvir, já não existe
mais. Como preencher seis mil caracteres assim?
Quando eu já estava praticamente desistindo de procurá-lo, encontrei-o novamente: no quase vácuo que me separa daquela estrela cuja ponta aponta para meu dedo, lá estava ele, olhando e sorrindo pra mim, e agora era tão nítido, tão claro, que dava vontade de pegá-lo e guardá-lo no bolso. Não resisti:
- Ei, como vai?
Quedê? Foi só eu fazer a pergunta, foram só os primeiros fonemas se articularem e saírem de minha boca, e ele já não havia, parece que nunca houve e tudo fora delírio de minha mente mentirosa que vive a me pregar peças... Voltei a mim, triste com a fonte perdida, angustiado com a missão que eu não conseguia nunca cumprir... Era como engolir um ângulo obtuso, era como se eu obturasse um dente ou arrancasse o siso, era como chuva de madrugada. Mas eu não como chuva de madrugada; se pudesse apenas me resignaria a bebê-la.
Ontem eu era jovem demais para perceber que no instante exato em que eu voltei a mim, triste com a fonte perdida, a fonte já não era mais perdida, jorrava novamente porque me voltando a mim, ele me vinha e me via e macia era sua voz vazia a me encher de nada. Estranho amigo este...
Hoje, que já sou velho o suficiente para compreender que a sabedoria da vida não mora em lugar algum e que mais perto fica o sorriso de uma criança do que o pote de ouro no começo do arco-íris, consegui entendê-lo um pouco. Deixei-o falar por si só, já que tudo o que eu falasse o espantaria, tímido que só ele, avesso a gravadores e esquivo a repórteres inescrupulosos que nem eu.
Pensei um oi como vai você. E deixei-o responder ao seu modo, de medo e nada, de mudo e nó, de não e dó e nódoas. O lápis sobre a mesa continuou estático e eu entendi sua resposta. O lápis não poderia andar. O lápis não diz.
Eu fiquei atrevido aproveitando pra apreciar meu entrevistado, que é fugidio e calado que só. Olhei em derredor como que perguntando como ele fazia para viver num mundo onde as pessoas barulham tanto, não param de diz-que-diz-ques.
Depois de alguns minutos percebi sua resposta na flor que levemente se abria. Suas pétalas se separavam, sem fórceps, sem bruta força alguma. E, aos poucos, a plantinha ora muda que sempre adornou minha mesa foi ganhando uma vida nova, ainda que muda vida, muito mais comunicação.
Insisti que não era possível continuar ele existindo se ainda há tanto tumulto por túmulo, guerras e mais guerras, bombas que não são de chocolate... Mas então eu me lembrei de como é bonito o sorriso de minha mulher quando vem me amar, é como o sol nascendo com aquelas cores indefiníveis dele furtando a beleza do mundo todo num trago profundo e saboroso. Corri pra janela, só que ainda era cedo demais para eu ver este espetáculo que meu entrevistado tanto queria me mostrar.
Existi que não era possível continuar ele insistindo se a vida anda confusa e a confusão impede a confissão sigilosa porque do lado de fora sempre há ecos de trânsito com buzinas, de gritos com torcida, de música com festa. Percebi que ele ficou triste, mas não se levantou do banco onde estava. Inerte, parecia o pensador de Rodin e cheguei mesmo a pensar que ele fosse uma escultura e estivesse há muito tempo na mesma posição contemplativa, ensimesmado.
Minha aflição se intensificava à medida que eu não obtinha resposta alguma. Nada mesmo. E pela minha cabeça um turbilhão de negações passeavam afoitas, eram gentes vermelhas no corre-corre mundano, eram telefones tocando, eram acidentes de carro, eram tevês ligadas em alto volume, eram famílias se esfacelando movidas a discussões inúteis e ridículas.
A agonia aumentando, ele continuando pensador de Rodin, eu rodando em pensamentos pessimistas. Foi quando me lembrei que quando menino brincava de fazer bolinhas de sabão. Uma dessas bolhas, a mais linda, veio à tona e foi ganhando a briga banal com meus pensamentos pessimistas. Era a maior de todas, e a luz do sol prismando nela se arco-irisava como nunca se vira. E ela foi subindo, ao vento, ao léu, livre e leve, quieta. Súbito descia, ao sabor do ar sacolejava, bem devagarinho. Que sutileza! Que vontade de ligar o gravador para captar seu som inexistente...
Entendi a resposta, mas minha entrevista não podia acabar, eu ainda tinha muita coisa pra perguntar, não queria que ele fosse embora. Pensei em pedir o endereço de Deus, pois sabia que ele era amigo de Deus. Mas eu só pensava numa oração bonita que, espontânea, me fazia saber que bastava eu me calar e Deus onisciente e bondoso entenderia minhas necessidades e me agraciaria com seus dons. A oração bonita não tem palavras. A oração bonita é provisão de Deus. A oração bonita é casa de Deus.
Dei um suspiro, controlei-me para não estragar tudo, tive um receio absurdo de espantá-lo. Olhei-me ao espelho e refleti: e o amor? Será que existia de verdade? Onde é que havia então?
Acho que meu entrevistado deve ter se deparado com a pergunta mais difícil de toda a sua vida. A pergunta que moveu homens e exércitos, construiu maravilhas e destruiu povos; a razão da poesia e da loucura, o artefato mágico que garante a preservação da espécie. E eu perdoei-o por não me dar resposta: esta já havia pronta dentro de meu coração, foi só me recordar de uma troca de olhares e um senão.
Foi assim que eu domei o silêncio, e ele falou para mim, e eu falei com ele. Foi assim que o silêncio se fez.
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