ROLETA
PAULISTA
Carlos C. Alberts
Já estava no meio do quarteirão. Como tinha conseguido passar pelo farol vermelho? O quinto seguido. Dois recordes: cinco semáforos no vermelho (intercalados com três no verde) e, ainda mais impressionante, sem bater em nenhum veículo que atravessava. Quase nove mil rotações por minuto, informava o contagiros. Isto deve representar perto de duzentos e trinta por hora. Não dá ara saber ao certo. Ninguém coloca velocímetro em carro de racha. Se soubesse a velocidade em tempo real, não teria coragem de acelerar tanto. Neste mundo de velocidade ilegal, a coragem depende da ignorância. Claro, não ignorava a probabilidade bater ao atravessar o cruzamento durante o sinal vermelho. Não ignorava que podia matar alguém inocente se houvesse uma colisão. Um pai de família, talvez (se bem que seria de se perguntar que pai de família estaria atravessando a 9 de Julho às três da madrugada). Não ignorava que ele próprio poderia morrer. Não ignorava. Mas se forçava a esquecer.
230 kilómetros por hora. Mas parecia câmera lenta. Cada detalhe era notado. O estranho halo azulado emitido pela lâmpada que iluminava a avenida. O rosto amassado do político no papel que caia no bueiro. A árvore magricela na calçada deserta. Tudo muito nítido. Nenhum som.
Muito lentamente, começou a perceber que o volante estava muito mais perto de seu peito que de costume. Estranho. A maçaneta da porta estava sobre o banco do passageiro. A maçaneta externa. Alias, a porta toda estava sobre o banco. Interessante como podia ver o asfalto, agora: sem olhar para frente. Bastava olhar par onde normalmente ficava o assoalho do carro. Mas olhando para frente, ao invés a linha reta que demarcava o inicio do capô (que abrigava o musculoso V8 de 5.2 litros do Dart 1971, branco) via um V. Sim, uma dobradura em forma de V bem no meio do capô. A sensação de câmera lenta termina instantaneamente. Pela abertura onde ficava anteriormente a porta do passageiro, pode ver (em ângulo de 90 graus) o Maveric 308 GT. Destruído. Compreendeu que não tinha quebrado nenhum dos dois recordes.
O guarda de transito Bello já está acostumado com a cena. Nos plantões da madrugada os acidentes de racha são comuns. Normalmente, não se importa mais com os mortos ou com os feridos. Filhinhos de papai, que sempre tiveram tudo (e não aproveitaram), talvez não merecessem continuar impunes. Mas esta nova modalidade, a roleta, sempre acaba atingindo inocentes. Sem mencionar os maravilhosos carros, agora destruídos. Alem disso, os participantes nunca são muito jovens. Caras com a mesma idade que ele. Obviamente, tinham sido trabalhadores. Homens bem sucedidos. De bom gosto. Dá para notar pelos carros. Por que faziam isto? Crise da meia idade? Ele duvida: crise da meia idade é o nome que as mulheres dão ao comportamento do homem que descobre que pode fazer o que quiser, inclusive comer as mulheres mais novas. Alias, quanto mais mulheres e, principalmente, quanto mais jovens, maior é a "crise". Não. Estes caras fizeram tudo. Tiveram tudo. Conseguiram tudo. Talvez, para eles, tenham acabado os desafios.
Mas por que o sujeito morto no magnífico
Dart branco está sorrindo? Parece estar olhando a lateral do Maveric
com o qual bateu. Bello, aproximando-se do segundo carro, nota, contra o fundo
verde quase iridescente da pintura, um pequeno adesivo preto. Um desenho estilizado
de um crânio humano com uma pistola apontada para ele. O símbolo
da roleta. O mesmo que está estampado na lateral do outro carro. Ele
pode estar sorrindo porque percebeu, antes de morrer, que não tinha atingido
um inocente. Ou, mais provável, que não tendo ultrapassado um
último semáforo no vermelho, pelo menos impediu que outro o fizesse,
quando tinha a sorte de estar atravessando no verde.
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