I SEE DEAD BIRD!
Beto Muniz

 
 

Rua Professor Alfredo Ashcar, Morumbi.

Estaciono sob o arvoredo, abro os vidros, desligo o ar e começo a retornar algumas ligações registradas no bina do celular. Meu carro, meu escritório. Enquanto deixo recados e resolvo assuntos de trabalho um pássaro azul pousa, três metros adiante, e só então percebo outro pássaro no asfalto, um filhote. Camuflado entre folhas mortas o Sanhacinho começa sua vida. Filhote afoito - penso, quis conhecer o mundo fora do ninho antes do tempo. Suas asas são inúteis ainda. Agora que caiu a melhor coisa que faz é ficar ali, quieto no meio fio. O Sanhaço adulto ao seu lado oferece alimentos. Sua cria arreganha o bico e externa felicidade nas asas trêmulas.

Fico atento. Entre um telefonema e outro a cena se repete. Quando está sozinho o filhote fica imóvel, difícil percebê-lo na camuflagem de folhas e sombras, ao lado um filete d'água fluindo em direção a avenida. Alguém lava a calçada no cume da ladeira. Silêncio na rua, apenas vez em quando um carro, um gorjeio solitário ou um choro de criança fugindo por cima do muro. Vinte minutos de pausa na loucura paulistana e estou pronto para recomeçar. Hora de levantar acampamento, vidros e ligar o ar. Antes, um último olhar solidário para o filhote caído do ninho... a cigarra quebra a ausência de sons quase ao mesmo tempo em que dois Sanhaços começam uma algazarra diante do filhote no asfalto, um pardal pousa num galho baixo, quase rente ao meio fio e faz coro escandaloso com o casal azul. Surge um escandaloso papa-mel e a cigarra se cala. O Sanhaço maior, mais azul, arremete contra o filhote no solo, estridente, nervoso, parece um pai moralista bronqueado com o filho boa-vida: "Mexa-se preguiçoso! Vai a cata do próprio alimento!" Faço a livre tradução antes de perceber o felino insinuante no alto do muro. Ele para, arma o bote e fica imóvel, olfato, audição e visão no solo avaliando a presa. Entendo o desespero dos pássaros azuis, compreendo a solidariedade do pardal e do papa-mel. Penso que deveria interferir, salvar o filhote que percebendo, ou informado do perigo, inicia uma imitação desajeitada de vôo. Suas asas ainda não estão prontas, ele não estava pronto para se aventurar fora do ninho. O gato estava. Chega a ser covardia. Libero o cinto, tiro a chave do contato, destravo a porta pronto para socorrer o filhote.

Um salto. Um vôo. O sanhaço azul pousa no galho acima do meu pára-brisa e assiste impotente a cena, deve repudiar a péssima educação do felino que brinca com a comida. Em protesto suja meu capô e voa para longe. "Ei! Seu porco alado!". Uma perua escolar passa próximo ao gato que resolve deixar de brincadeiras e se vai. Leva nas presas o filhote sem vida. A rua volta a ficar em silêncio quando o pardal, penúltima testemunha dessa tragédia urbana, some entre as copas das árvores. Ligo o carro, aciono o ar e manobro em direção a avenida. Último a sair de cena.

Achei que não seria correto interferir nos assuntos da rua Professor Alfredo Ashcar.

 
 

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