AQUELE
SILÊNCIO
Bárbara Helena
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The memory of all that
No they can't take that away from me"
Quando o dia está assim, comprido, interminável, não sei porque me lembro do Waltinho. Foi o sax mais bonito que já ouvi pessoalmente. E olha que segui muita banda, antes dos cigarettes, no tempo de adolescente, pegando carona nas banguelas.
Waltinho se chamava Valter com V, mas pouca gente sabia. Nem se importava. De qualquer maneira era tão lindo seu jeito de tocar que o olho chorava sem o coração perceber.
Uma noite ele se incorporou aos cigarettes, apaixonado por Marina, a beleza loura e a voz negra da Holliday. A gente vivia na corda bamba, mas onde passavam fome três, sobreviviam quatro e os cigarette blues arranjaram um sax de arrebentar a alma de um cristão.
Logo Marina enjoou, não era mulher de amores longos.
Quando o dia está assim, imenso, inalcançável... olho o mundaréu de estrada que vai sumindo na poeira atrás do trailer e me pego pensando no Waltinho.
Ele sofreu, se juntou a Billie na secura por Marina. E nossa banda ganhou em beleza arrasadora. Eternamente blues.
Não que a gente não se divertisse, muito pelo contrário. Waltinho era um sujeito engraçado, teria sido um grande humorista, não fosse o talento para a música. Depois do espetáculo, na hora do cafezinho e do fumete, o trailer sacudia mais do que as molas do colchão de Mimi, com as risadas dos cigarette blues.
O cara tinha histórias incríveis por este Brasil de meu Deus. Tudo que a gente passou virava brincadeira perto da vida intensa daquele mulato pernambucano, perdido no sertão. E nunca se queixava, morria de rir e transformava em piada a vida bandida.
"Child, the living's easy".... viver era de ouvido... tempos de verão.. summertimes...
Quando o dia está assim, comprido, interminável, não sei bem porque, eu me lembro dele. Do jeito com que enrolava a bagana, os olhos meio fechados, sorriso torto.
Lembro especialmente da noite anterior à sua partida. Porque a gente tinha rido muito, falado bobagens sem parar, do jeito que os jovens conseguem, quando é verão. Fazia um calor infernal, como agora, mas para nós tudo era festa. Tínhamos arrumado uma casa boa, com acústica de cidade grande, num povoado da periferia, perto da Taubaté. Um cassino clandestino e muito bem freqüentado pela grana paulista. Na passagem de som vimos que o show ia arrebentar.
E arrebentou.
"There are many many crazy things...that will keep me loving you...and with your permission... may I list a few..."
Marina cantou como nunca, nós arrasamos no backing, Billie destruiu na guitarra, mas inesquecível mesmo foi o sax de Waltinho...
"No, no... they can't take that away from me"
Ninguém pode arrancar isto de mim. A lembrança daquela música inesquecível, o sorriso dele, seu jeito, sua voz irônica, o amor que guardei intacto, cristal de rocha, paralelogramo, encouraçado.
Fizemos a apresentação de nossas vidas. Nunca mais houve uma noite como aquela. Nunca mais um fraseado de sax como o dele.
"The way you wear your hat...the way you sip your tea..."
Marina cantava ,arrebatadora, como se soubesse.
Mas a gente não sabia. Não sabia que nosso sax estava condenado. No final do show, na hora mágica do café, encontrei Waltinho curvado, arquejante , apoiado no trailer.
- O que foi? Viagem errada? Eu nem sonhava o que acontecia
- Não, princesa, é só uma falta de ar... já vai passar...
- Foi alguma coisa pesada?
- Não, eu tô limpo, é o calor... deve ser...
Então, eu nunca vou esquecer, ele caiu nos meus braços, deu um suspiro breve e ficou quieto. Surgiu entre nós um silêncio. Um silêncio interminável, como esta estrada, um silêncio da terra, das estrelas no céu, um silêncio absoluto, nítido, negro.
Depois eu gritei e não lembro direito o que aconteceu.
Waltinho tinha um problema grave no coração, mas não se tratava. Queria morrer assim, vivendo, nos braços de uma mulher , na estrada.
Na outra noite nem sei como fizemos o espetáculo. Só sei que tocamos, em homenagem a ele, a alma sangrando:
"The memory of all that... No, no ,no..,no...
they can't take that away from me..."
Quando o dia está assim, imenso, inalcançável, eu lembro de Waltinho, lembro este blues, mas eu não canto.
Quando o dia está assim, comprido, interminável, eu lembro daquele silêncio.
E algumas vezes, choro.
( em homenagem à Sacha )
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