O
SILÊNCIO DA ALMA
Argento
Naquela manhã acordaram cedo e como haviam planejado partiram juntos para o parque da cidade. Verificaram antes as mochilas e deram uma geral no pneu das bicicletas, já que a revisão completa tinha sido feita anteriormente no cicle do bairro. Meia hora após o café da manhã já estavam na estrada. Longo caminho percorrido com alegria adolescente e marcado pelo constante barulho do silêncio. Longe, bem ao longe ouvia-se quase sem que fosse possível perceber o barulho nulo do sereno, o canto da cigarra solitária e o ruído agudo do galo perdido em hora tão errónea. A escuridão da noite era apenas interrompida fracamente pelos raios da lua minguante. O sol ainda preguiçoso dormia, dormia... sem se preocupar com a tal noite murcha que já estava quase por se despedir. No meio do caminho eles avistaram um falcão em vôo simétrico circular e que parecia meio embriagado. Porém, mais adiante para sua surpresa uma faca cravada ao chão e marcas de sangue denunciavam uma tragédia recente. Assustados e confusos eles esboçaram uma reação de fuga, mas ao tentarem se afastar do local, o tal pássaro pousou e num segundo como que do nada brotou fumaça de suas ventas. A substância embaçou todo o ambiente e de dentro dela surgiu um índio forte que parecia tupi exalando um pequenino odor de cachaça em seu ofegante respirar. O silencio pareceu maior ainda naquele instante. xxxxxx Jussara era uma menina linda, porém ela não escondia sua tristeza. Seu rosto bronzeado pelo sol irradiava uma beleza quase infinita, mas que era cortada pelo semblante sério e pelos olhos vazios como que furados por um punhal afiado. Ela era mestiça, filha de uma índia e de um holandês. Nunca conhecera seu verdadeiro pai, ele fora criada pela mãe. Habitavam atualmente uma das cabanas da floresta. Sua mãe havia sumido de casa já fazia alguns dias, mas como sabia do seu temperamento misterioso, ela pouco se preocupava com a situação e limitava-se a cuidar da horta, das flores e de manter a casa limpa e arrumada. A bela moça era a tristeza que habitava aquele paraíso ecológico. Os pássaros pretos todavia denotavam a visita da morte no pictórico local. xxxxxx Tomba Pedra o feiticeiro da tribo orava em canções perdidas lamentando a precoce extinção de sua gente. Olhava para as pequenas nuvens de fumaça que partiram de sua boca feia e rabugenta. Seus olhos no entanto foram desviados pela presença deles. - Silêncio da alma! Silêncio da alma! xxxxxx Pedro adorava poesia e inexplicavelmente naquela manhã desfilava as letras de uma bela e triste canção. Brotavam de sua alma palavras sem nexo e que o deixavam perdido. Quantas vezes quis fazer um poema diferente e cheio de emoção e que teimava em não nascer. Agora ela escorria feito lágrima de seu coração assustado. Resgata-me
a tristeza, venha a mim Silêncio! Inocência
de criança No vôo
do falcão! No võo
do falcão Silêncio
que não cala!
A ave linda ainda tentou escapar mas foi mortalmente atingida pela faca da paixão. Num golpe certeiro que vazou seu coração. O perseguidor alado, em acesso de raiva, cravou o objeto ainda vermelho no solo. No meio da confusão ainda foi possível ouvir os gritos apavorados da linda mulher pássaro que foi pouco a pouco transformado num silêncio aterrador. Um silêncio pungente, um silêncio cortante, um silêncio constante. A lua chorou então um sereno diferente que molhou levemente toda clareira. Mas que não foi capaz de dissipar as manchas que o malfeitor deixou pra trás em seu ódio ignóbil. xxxxxx Agora desenhava-se mais uma pequena tragédia. Os meninos ainda paralisados olhavam para o indígena sem acreditar no que ocorrera. O animal caminhou calmamente e sorrindo como um demente retirou do chão a lâmina que ainda brilhava. Cada uma das atônitas pseudo-vítimas olhara-se sem nada entender. E quando o fim parecia inevitável, surgiu da floresta uma bela criatura. Os dois se olharam longamente e o tal homem louco foi pouco a pouco se transformando. Logo depois alçou vôo em forma de falcão. Todavia ao tentar se afastar do encontro teve suas asas destroçadas pelo brilho do sol . E novamente como que do nada surgiu um lobo que após breve canto metamorfou-se em gente. Um quase imperceptível som brotou de seu ser e pouco a pouco foi se transformando em urro. A mocinha fugiu e os garotos paralisados ainda conseguiram entender a mensagem, antes que o velhote se transformasse em lobo e os deixassem ao sabor do vento rascante. xxxxxx Em casa Pedro acordou assustado com os gritos que brotavam do seu pesadelos. Tomou um copo d'água e foi buscar aquela nova poesia. Um bem-te-vi porém, percorreu sua varanda antes que pudesse pensar em algo e trouxe-lhe uma pena de pomba branca. Algo inexplicavelmente triste varou sua alma, era um gemido, não, era um grito! Mas, carregava dentro de si toda a dor. Toda a dor do silêncio. |