CRÔNICA INDIGNADA DE UM ALLEGRO MISANTROPO V
Sérgio Galli


ao som de Kindertotenlieder (canções das crianças mortas) de Gustav Mahler e das melodias de Edu Lobo

“...Além disso, o crescimento econômico causa novos desregramentos. Seu caráter exponencial não cria apenas um processo multiforme de degradação da biosfera, mas também um processo multiforme de degradação da psicosfera, ou seja, de nossas vidas mentais, afetivas, morais, e tudo isso tem conseqüências em cadeia e em anel.
Os efeitos civilizacionais produzidos pela mercantilização de todas as coisas, justamente anunciada por Marx – depois da água, do mar e do sol, os órgãos do corpo humano, o sangue, o esperma, o óvulo e o tecido fetal tornam-se mercadorias --, são a decadência da doação, do gratuito, do oferecimento, do serviço prestado, o quase desaparecimento do não-monetário, que ocasiona a erosão de qualquer outro valor que não o atrativo do lucro, o interesse financeiro, a sede de riqueza...”

Edgar Morin e Anne Brigitte Kern in “Terra-Pátria”, Editora Sulina, Porto Alegre, maio de 2003


Ao inútil pranto do poeta, o cântico dos pássaros.

Crianças mortas em Beslan, Rússia e o inútil pranto do poeta. Cântico inútil do rouxinol. Mas quem se importa com as crianças mortas em Beslan, afora as mães e familiares?

O quadro “O grito” do artista norueguês Edvard Munch é roubado. Inútil pranto do sabiá. Cântico inútil do poeta. Mas para a inútil humanidade o que importa é o namoro do jogador de futebol famoso e da célebre modelo. Amorketing. Assim, o inútil é útil o útil inútil.

O quadro e Munch e as crianças mortas de Beslan se interagem e formam óleo expressionista-impressionista-surrealista-realista símbolo do imundomundoimundo.
Isto é o que chamamos de civilização ocidental judaico-cristã? O ápice – numa leitura errada e apressada de Charles Darwin – da evolução? Não seria melhor barbárie civilizacional ou civilização bárbara? Mas os áulicos da globalização não apregoam aos quatro cantos que, com o fim da URSS, o fim da história, o Deus Mercado e a Deusa Tecnologia não iriam nos levar ao melhor dos mundos? A felicidade estaria ali, a um palmo do nosso nariz? O progresso o progresso o progresso em sua linha reta de progressão, junto com as milhares de quinquilharias eletrônicas era o caminho inevitável, inexpugnável, inexorável para a melhoria da qualidade de vida. Mas de quem?

“Mais de um bilhão de pessoas bebem água insalubre e mais de 2,6 bilhões, ou cerca de 40 por cento da população mundial, não têm acesso a saneamento básico, informaram na quinta-feira agências da Organização das Nações Unidas (ONU).... "Em todo o mundo, milhões de crianças estão nascendo em meio a uma emergência silenciosa de necessidades básicas", afirmou Carol Bellamy, diretora-executiva do Unicef, o órgão da ONU para a Infância. "Precisamos agir agora para fechar esse gap (de saúde) ou então a cifra de mortes vai certamente aumentar", acrescentou.... A diarréia mata cerca de 1,8 milhão de pessoas todos os anos, a maioria crianças com menos de cinco anos, e deixa milhões permanentemente debilitadas, disse o documento.... Mas o progresso é irregular, com cerca de 42 por cento dos 1,1 bilhão de pessoas sem acesso à água limpa vivendo na África subsaariana....Quanto ao saneamento, contudo, a situação é pior. A porcentagem de pessoas com ao menos o mínimo aceitável no quesito subiu para apenas 58 por cento em 2002 -- último ano em que dados estavam disponíveis -- de 49 por cento em 1990.
Perto de 1,5 bilhão das pessoas vivendo atualmente sem acesso a saneamento moram na Índia e na China.”

Desculpem a longa citação, mas é necessária. Enquanto isso, Michael Dell, dono da Dell Computer tem uma fortuna calculada em US$ 17,95 bilhões; Pierre Omidayar, da eBay, US$ 10,05 bilhões. E por aí afora. Isso para não falarmos dos lucros da grandes corporações que forma a atual plutocracia que é, de fato, quem governa o mundo.

Isto é o crescimento? Isto é desenvolvimento, seja ele sustentável – eufemismo cínico – ou não? Para isso serve o superávit primário? Desenvolvimento/crescimento igual a fome, destruição, empobrecimento. Claro, mas o circo da mídia noz traz na hora do jantar – esquentado no forno microondas e regado àquele refrigerante – as crianças mortas de Beslan. O show tem de continuar, pois logo em seguida entra o comercial daquela cerveja com aquela loira estonteante e, logo após, a novela: quem matou o mocinho? E vamos dormir o sono dos justos, com nossa consciência tranqüila, pois nossa má consciência pagamos com a contribuição que daremos, logo de manhã, para o criança esperança. Claro, pagamos por meio do nosso telefone móvel (por que no brazil se chama celular?). Somos modernos, antenados, plugados. A sociedade da informação. A sociedade do Conhecimento. ISSO 9001. ISSO 14000. Responsabilidade Social. Sociedade do espetáculo! Inútil sociedade. Civilização inútil.

Mas não choramos o bilhão crianças mortas de “caganeira” (desculpem o calão), ou num linguajar mais adequado, diarréia. Afinal, a patuléia do hemisfério Sul é apenas um número estatístico. Nos comovemos com os mortos da lista de Schlinder, mas não com as crianças mortas na África subsaariana. Não é espetáculo. Elas são invisíveis. Achamos lindo os comunistas seja na tela grande ou pequena (por exemplo, Olga). Já na vida real, queremos ver comunistas a sete palmos da terra. Será juntar u inútil ao desagradável?

Mas os paradoxos não param por aí. Os mesmos áulicos da globalização, da aldeia global, são os mesmo que se voltam aos velhos nacionalismos, a patriotismos histéricos e histriônicos.Nessas horas lembro-me de uma frase, não me recordo o autor, ótima; “patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. Pois não foi a globalização que acabou com o Estado-nação? E aí vem o presidente da república de plantão e seus asseclas clamar por amor à pátria, desfiles cívico-militares, homenages aos atletas que ganharam medalhas na Olimpíada de Atenas e tantas outras baboseiras. Mas é o mesmo presidente rapapé que diz sim, sim senhor aos senhores do fmi, senhores da guerra, senhores do universo. Mas, afinal, no show da vida o papel dos humilhados e dos ofendidos, e das crianças mortas em Beslan, e das crianças mortas na África subsaariana, é o de um número em alguma estatística. Somos dispensáveis. Não foi assim que um ministro do Supremo Tribunal Federal se referiu aos funcionários. Para ele, as máquinas resolveriam todos os problemas. Funcionários dispensados. Aposentados extintos. Eliminação dos pedestres. A patuléia morre de fome. Crianças mortas em Beslan, mortas de diarréia... O melhor do mundo. Só ficariam os robôs, as máquinas, os celulares, os automóveis, os computadores e, claro, os iluminados, os ministros do Supremo, os parlamentares, os presidentes, os executivos das grandes corporações, os generais, alguns tecnocratas... Admirável mundo novo... Aldous Huxley e Isaac Asimov devem estar de queixo caído.

Mas as crianças mortas de Beslan já são uma página virada. A sociedade do espetáculo precisa se auto alimentar em sua voracidade-velocidade de mais e mais e piores notícias, informações, tanto quanto precisa de fésti-fudi, desodorantes, noticiários, crianças vítimas de terroristas.... Afinal, o Deus mercado não pode derramar muitas lágrimas pelas crianças mortas em Beslan. Deus mercado precisa que as crianças indianas, chinesas comam big-mac, coca-cola, que seus pais, comprem o novo carro do ano, mesmo que exalem o perfume de dióxido de carbono, afinal, esse negócio de efeito estufa, mudanças climáticas, são coisas de ecochatos. O progresso tem de continuar, assim como o show da vida, o entretenimento. As crianças mortas de Beslan? Alguém aí na balada, na rave se lembra? Como lembrar? Estamos ligadões! Rola esctasy, drogadição a mil! Crianças mortas em Beslan? Vamos curtir a balada. Ou então, em nosso egoísmo mais “light”, vamos tomar um brunch, seguir para o escritório, depositar um dinheiro na conta corrente, investir em ações, enviar mensagens pela rede de computadores, criar nosso “blog”, ir ao xópin, fazer umas comprinhas básicas, depois o happy hour, a balada.... o dia seguinte, o brunch, o escritório, a mensagem, xópin, happy hour, balada... quiçá, um churrasco no final de semana... o dia seguinte, o brunch.... Oh” hedonismo! Crianças mortas em Beslan? O que é isso? Uma nova marca de refrigerante? Desodorante? Automóvel? Um novo filme do Spielberg? Mas afinal, quando vai ser o casamento do famoso jogador de futebol com a célebre modelo? Afinal, as crianças mortas de Beslan são coisas de pessimistas. Alegria! Otimismo da desrazão! Ta na hora da balada.

De que adianta meu inútil prantocanto diante dessa cantilena, cantochão, rap: crescimento, desenvolvimento, crescimento, desenvolvimento, progresso? Esta inútil crônica não tem a menor importância. A inúteis palavras escritas até agora nesta inútil página em branca neste inútil ecrã são inúteis. Dispensáveis, lembraria um ministro do Supremo, tanto quanto o poeta e seu prantocanto inútil.

A civilização contém a barbárie. A barbárie contém a civilização. A desumanidade está na humanidade. A razão da desrazão. A desrazão da razão.Só o humano pode ser desumano. A mais inútil bactéria é mais útil que o mais útil dos homens. As crianças mortas de Beslan e as crianças mortas na África subsaariana agradecem as lágrimas amargas derramadas pelo progresso, pelo desenvolvimento, pelo crescimento, pelo superávit primário, pelo pib, pelo fmi, pelo banco mundial. Aproveitam para pedir desculpas por atrapalhar o supimpa jantar dos telespectadores.

Termino meu inútil cantopranto com meu céptico coração de empedernido pessimismo da razão respira um fiapo último de otimismo na esperança de que a extinção do homo sapiens demens seja a mais breve possível!

 

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